segunda-feira, 25 de março de 2019

OS FLUXOS CONTÍNUOS DE RUTH GUIMARÃES E DE SEU LIVRO "ÁGUA FUNDA"


A escritora Ruth Guimarães (centro) em 1956, durante o lançamento de Corpo de baile, de Guimarães Rosa (à direita)

Palmeiras (1925), de Tarsila do Amaral, ilustra a capa da 3ª edição de Água funda (1946), de Ruth Guimarães, lançada pela Editora 34 na Academia Paulista de Letras, em 14 de junho de 2018 – um dia depois da data de aniversário da autora, que faria, se estivesse viva, 98 anos.

A arte de Tarsila na capa do livro inscreve o romance na cartografia modernista da qual Ruth Guimarães foi parte, situando a obra no tempo e no território cultural e estético na qual ela foi criada e primeiramente recebida.

Palmeiras, enquanto signo, reescreve um texto dos mais reproduzidos na configuração/produção do nacional – eterno retorno da canção do exílio. De lá da Europa, em carta escrita durante seu período de formação em Paris, Tarsila do Amaral fala a respeito das negociações com o nacional, diante, inclusive, das solicitações europeias por identidade:

Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. Como agradeço por ter passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de mato, como no último quadro que estou pintando. Não pensem que essa tendência é malvista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio país. Assim se explicam os sucessos dos bailados russos, das gravuraras japonesas e da música negra. Paris está farta de arte parisiense.[nota 1] 

Como Tarsila, oriunda de Capivari (SP), Ruth Guimarães também viveu numa fazenda no interior paulistano. Mas, diferentemente da pintora, nunca saiu do Brasil – viveu 93 anos e morreu no mesmo lugar em que nasceu. O território moldou largamente seu universo autoral: experimentou e pesquisou o mundo caipira, tomando-o por conteúdo e dicção na ficção. Em carta que escreveu a Mário de Andrade, seu grande mestre, ela diz: Acabei tirando da gaveta os originais de um romance, em que, ah! você ia se admirar, tenho a certeza, eu escrevia do jeitinho que você recomendava: fácil, sincera, descuidada, prosa brasileira sem nada dentro, mas com aquela filosofia que somente se encontra na linguagem do povo. E tudo isso não por mérito meu, mas porque, modéstia à parte, eu sou caipira mesmo, e era, então, uma caipirinha sem nenhum polimento.

Comparando os trechos das epístolas, vê-se que o lócus de enunciação e a linguagem que Ruth Guimarães inscreve na ficção corresponde ao conteúdo nacional vivo que a pintora modernista buscava como formalização estética e representação artística. Esse é o ponto tangente entre as duas criadoras. O mais é distância. A romancista negra tem sido mantida à margem do cânone nacional. Por isso, celebremos a reedição do livro, que o coloca novamente em circulação.

***

Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, em 1920. Aos 18 anos, mudou-se para a cidade de São Paulo, depois de ter perdido a mãe. Seus primeiros tempos na “terra da garoa” foram difíceis, solitários:

Eu não conhecia ninguém, a não ser dos livros, lidos no silêncio da noite, no meu quartinho de dois passos de largura, sublocado nos fundos de uma casa de família. Lia, depois de um dia inteiro batendo listas de cobrança e calculando colunas de algarismos nos borderôs de bancos. Sozinha, nem parentes nem amigos, e pobre de doer, de dinheiro e de tudo o mais (nessa grande São Paulo). Ao mesmo tempo, rica de certeza, de uma presciência, de uma esperança, que sei eu? sonhando os sonhos mais doidos. Viver, sempre aceitei como uma grande aventura. [nota 2]

Já era escritora e sabia o que queria. Assim que chega à Pauliceia, se dirige, com seus textos e sua voz, à célebre casa da Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, e bate à porta do escritor Mário de Andrade, empunhando debaixo do braço um caderno com manuscritos de sua pesquisa sobre a presença do Demônio na cultura do Vale do Paraíba.

Mário encaminhou Ruth à Roda da Baruel, um ponto de encontro de escritores e artistas nos arredores da Rua Direita, no centro da cidade, mais precisamente na Drogaria Baruel. Lá se reuniu a intelectualidade paulista de 1935 a 1945. Nas palavras de Mário da Silva Brito, um de seus membros, pela Roda da Baruel passavam – uns com regularidade diária, outros de quando em quando – Edgar Cavalheiro, escritor, jornalista e editor; o romancista Antonio Constantino; o jornalista Fernando Góes; Jamil Almansur Haddad; Leão Machado, recém-vindo do interior com vários romances na gaveta; Maurício de Moraes; Hildebrando de Lima; o repórter Maurício Loureiro Gama; o escritor Mário Donato; Orígenes Lessa; João de Araújo Nabuco; Edmundo Rossi; a romancista Ruth Guimarães, às voltas com seu estudo folclórico sobre o Diabo; Oswald de Andrade, que queria fundar a Academia Baruel e fazer dela uma espécie de Goncourt bandeirante que ofuscasse a Academia Paulista de Letras; e mais Paulo César da Silva, Nelson Palma Travassos, James Amado, Nelson Werneck Sodré, Sérgio Milliet e Mário de Andrade, que aparecia raramente, mas mandava cartas ao Amadeu Bueno, o mais velho da roda. Compareciam também, entre tanta gente que frequentava a farmácia, cada grupo com seu inflexível horário, algumas veneráveis figuras que os jovens irreverentemente alcunhavam os “canastrões do Instituto Histórico (e Geográfico Brasileiro)”. [nota 3]

Uma escritora negra jovem, que chega na roda da intelectualidade paulista, literalmente no centro do território – citadino e intelectual – dominado pela elite de homens majoritariamente brancos, e se estabelece. Amadeu de Queiroz, que encaminhou os originais do romance para o editor Edgar Cavalheiro (representante da livraria O Globo, de Porto Alegre, que publicou Água funda), registrou sua primeira leitura dos manuscritos do romance nestes termos: “Não encontrei nele o que censurar, suprimir, acrescentar – a escritora havia escrito um romance, e dizendo isto tenho dito tudo. (...) Não descobri nem emendei, não corrigi nem apadrinhei a escritora Ruth Guimarães, encontrei-a moça de vinte anos e já romancista”.

Mário de Andrade morreu em 1945, sem ter visto o romance publicado. Foi definitivamente o grande mestre da escritora, como ela disse-lhe em carta: Havia aprendido com você duas verdades: uma, que só tem direito de errar quem sabe o certo. A outra é que o certo eu mesma é que deveria encontrar. E eu procurei, padrinho Mário. Eu procurei. [nota 4]


Água funda foi publicado em 1946, e Ruth Guimarães tornou-se a primeira escritora negra brasileira a ter projeção nacional. Alguns anos depois, ela se forma pela Faculdade de Filosofia da USP, onde cursou Letras Clássicas e também cursos de Folclore e Estética. Chamava Roger Bastide, seu orientador, de Bastidinho.
Passou a vida escrevendo. Publicou dezenas de obras, entre ficção, não ficção, e tradução (do francês, do russo, do latim). Durante muitos anos foi colunista nos grandes jornais da imprensa paulista, como Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, publicando crônicas. Água funda é seu único romance. Em junho de 2008, aos 88 anos, foi empossada na Academia Paulista de Letras. A primeira – e ainda a única – escritora negra imortal da APL.

A segunda edição de seu romance foi publicada meio século depois da primeira, pela Editora Nova Fronteira, em 2003. Essa edição foi revista pela autora e prefaciada por Antonio Candido, que também escrevera um comentário crítico à altura que o romance surgiu, em 1946. Tanto o prefácio quanto o comentário do crítico estão republicados na nova publicação da Editora 34, que traz um apêndice com entrevista com a autora e um apanhado de sua fortuna crítica.

ÁGUA FUNDA

A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez (Água funda, 2018, p. 53).

Se a leitora ou leitor for, ou já tiver sido, neta/o de uma avó ou um avô contador/a de histórias, há grande chance de o narrador do romance ativar sua memória afetiva de volta à roda para ouvir sua/seu mais velha/o. Água funda é um romance narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente que tudo vê, tudo sabe e tudo lembra. Uma voz com feitio de contadora de casos, que a todo tempo lança um “ouvi dizer”, “o povo é quem diz”, ou ainda: “Homem! Como não faço fé em gente sem boca!”

A estória se passa no sul de Minas Gerais, nos arredores da fazenda Olhos D’água, entre o fim do período escravocrata e as primeiras décadas do século XX. O enredo destaca a história do casal Joca e Curiango, permeada pela presença de figuras como o Inácio Bugre, um índio independente da comunidade, e a Sinhá, que atravessa os tempos do romance. A protagonista da história, no entanto, é a própria Mãe de Ouro, figura mítica impassível e irremediável, que funciona na economia do enredo como uma representação do Destino.

Em termos da autoria de mulheres negras na literatura brasileira, Água funda ocupa lugar histórico de relevo, pois, segundo o que as pesquisas apontam, é o primeiro romance publicado por uma autora negra depois do término do período de cativeiro no Brasil, em 1888. Quando foi lançado, a liberdade no país só existia formalmente há 58 anos. Até onde sabemos, Ruth Guimarães é a segunda romancista negra da literatura brasileira. Água funda aparece quase um século após o surgimento do romance Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, nossa grande pioneira. O romance da escritora paulista, articulando águas profundas do Brasil libertado, trata, sobretudo, de processos históricos continuados, muitas vezes semelhantes a águas paradas.

O engenho é do tempo da escravatura. Seu Pedro Gomes, o morador mais antigo do lugar, ainda se lembra quando o paiol, perto da casa-grande, era senzala. Antes disso, era só um rancho de tropa, na baixada, e mato virgem subindo morro. A casa-grande pode-se dizer que é de ontem. Tem pouco mais de cem anos e ainda dura outros cem. (Água funda, 2018, p. 18).

NOTAS

[nota 1]. Aracy Amaral. Tarsila, sua obra e seu tempo. Editora 34/EDUSP: São Paulo, [1975] 2003, p. 78.)

[nota 2]. Ruth Guimarães. Cartas a Mario de Andrade. Ângulo, n. 137, 2015. Disponível em: < http://www.unifatea.edu.br/seer/index.php/angulo/article/viewArticle/1345). A citação está na página 52.

[nota 3]. Mário da Silva Brito. Diário intemporal. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1970.

[nota 4]. Cartas de Ruth Guimarães a Mario de Andrade, disponíveis no link da nota 2 deste texto. A citação em questão está na página 51.


* Fernanda Miranda é doutoranda em Letras (USP)

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