Ruth Guimarães
De vez em quando, por falta de assunto, acende-se uma discussão em torno do índio, de suas terras, dos seus direitos, ou alguém vai fazer pesquisas nas tribos. E há questões de terras e de divisas. Nada sério. Antes da colonização e das catequeses nada se sabia dos índios. E agora sabemos? Tivemos o Marechal Rondon, índio puro, o cacique Juruna que veio diretamente da tribo, Aldemir Martins o pintor universalmente premiado, e que se confessa índio com sua própria imagem – os olhos puxados, os zigomas, a cor, o riso. Nenhum deles selvagem. Nenhum vivendo a vida e a cultura dos nossos irmãos de mata, a não ser como observador, protetor, tendo cada um a seu modo porfiado por eles. De fora, por assim dizer. É de fora.
Quando se fala de mitos ameríndios, não se trata de indianismo puro, mas de reminiscências. Estas repontam aqui e ali, anônimas e inconscientes, folclorizadas, mas insuficientes. Mais recentemente, houve o movimento local, do Vale do Paraíba, focalizando o Saci e jogando-o contra as festas de bruxedo americano, do dia primeiro de novembro. Providências aleatórias, sem conseqüências, porque sem base folclórica, sem informar que o mito é africanizado, adotado pelas mucamas e redesenhado à moda afra. E nessa roupagem transformadora recomeçou de outra maneira a correr mundo.
Grandes grupos de indígenas foram dizimados, para que os homens ditos “os que trazem a civilização” trouxessem aos sertões, ou dos sertões cacau, salsaparrilha, urucu, anil, sementes, raízes, castanhas, madeira, minério, ouro, diamante, borracha. Os índios sofreram guerras, doenças, fome. Puros, existirão na Amazônia cerca de 100.000 indivíduos, e cada vez menos. Uns tantos no litoral paulista. Alguns em Goiás. Um punhado no Mato Grosso repartido em dois. Há a questão das terras, a luta dos índios na Constituição e fora dela – o improvável reconhecimento dos direitos territoriais, da demarcação e garantia das terras ameríndias; a tese utópica do usufruto exclusivo, pelos povos indígenas, de riquezas naturais do subsolo das reservas; questionável reconhecimento e respeito às organizações tribais. Tudo isto balela. Conversas eleitoreiras que já sabemos onde vão dar.
O índio, como raça, está perdido. Isto é, em extinção, o que é a mesma coisa. Já há tão poucos indígenas, no Brasil! E esses poucos estão enfurnados pelos matos, jogados nas reservas, ou por aí, como canoeiros, raizeiros, feiticeiros e outros eiros sem importância. Se, como raça, ele vai partir, para não mais voltar, como elemento constituinte do povo brasileiro, continua vivo. Quem poderá eliminar, da nossa etnia de mestiços, sobre mestiços, e mestiços de mestiços, em principal na região nordestina, o bronzeado da pele; os olhos puxados; o corte abulado para cima, na pálpebra; as maçãs do rosto, altas e separadas; o nariz reto, em bico de ave de rapina; o negro opaco dos olhos ditos enluarados; o luzidio dos cabelos escorridos? Como eliminar a parte selvagem, misturada ao branco, dentro dos cabras e dos caboclos, cafusos, mamelucos? Estes são vivos, são imortais. Legião mestiça da nossa Pátria morena.
O índio, nós o trazemos em nós.
Contribuição indígena temos pouca, isto é, muito pouco, em quantidade, mas muito muito em poesia, em fantasia, em imaginação, em beleza. Veja-se a história da Cobra Grande, que exigiu a pena de um poeta como Raul Bopp para desencantar.
O começo é assim, e com esse começo é-nos permitido sonhar:
A Cobra Grande ia se casar com a filha da rainha Luzia. Tinha mil olhos espalhados por dentro do corpo, por causa de devorar olhos de bichos selvagens, que tinham ido beber no lago verde em que vivia. Era cobra-macho, grandona, cruel, correndo mundo. Mboi-Açu chamada, em língua de índio, também chamada Boiúna, porque negra como o pecado.
Consta que o mundo começou em águas. Em água toda a gente morava. Era bem nos começos. No brejão o sol não entrava, nem carecia. O fundo do lago era verde claro, musguento, cheio de faíscas da luz que vinha de cima.
Por via do casamento, lá em baixo começou a aprontação. O derredor do palácio da rainha foi calçado com pedrinhas brancas, redondas de tanto rolar. Tudo foi lavado e esfregado, tudo ficou relumeando: a areia dourada, os camarões de casaca vermelha, o baratão cascudo, escurão, preto-pixa, os sapos de lombo rajado. O véu-de-noiva da cachoeira sacudiu uns adejos de espuma no ar. E escachoava, numa canção sem tamanho, antiga, antiga. Tudo para o casamento da filha da rainha Luzia.
Sem mais nem menos, correu uma notícia estranha. A princesa não queria mais casar.
A Cobra Grande piscou os molhos do avesso e se apagou. Da Boiúna que era ainda ficou mais preta, carvão. Resfolegava, coleando abaixo e acima. Os peixes se enfurnaram nas locas, saparia calou a boca. A lagoa se tornou taciturna. As águas se encolheram de medo. Nem a tempestade, riscando barulhão no ar e mandando flechas de fogo pra baixo trouxe tanto pavor, como o descontentamento da Cobra Grande. Nisto, a cachoeira pegou a cantar, sem-vergonha:
A filha da rainha Luzia sssssssssssshiiiiiii!
Não quer casas sssssssssssshhhiiiiiiaaaaa!
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