terça-feira, 23 de abril de 2013

Poemas de Marta


Ruth Guimarães

Ela é engraçada. Engraçada de duas maneiras. No sentido medieval do termo, com muita graça nos olhos, no formato do rosto de zigomas altos e largos, no escurinho da face que mais se arredonda no riso contagiante, engraçada nos modos, no todo o seu tantinho exótico. É engraçada também porque tem uns olhos grandes e sábios, às vezes centenas de anos mais velhos do que a jovenzinha que ela é. E no espelho desses lagos profundos, aparecem às vezes revelações de abismos que espantam, como se vindos de outras eras. E então ela tem esse olhar como quem se perde. Como de quem adivinha. E enquanto oscila entre esses dois universos, suavemente adolesce. São de adolescente os versos do poema da madrugada:
 Quero escrever um poema com jeitos de madrugada
Com cheiros de madrugada
Com toques de madrugada.
Quero fazer um poema
Que me alegre
Como ontem me alegraram
As tuas mãos trançadas sobre as minhas.

Eu quisera ser o pó
Que segue a dançar
Pelas estradas
Quisera voar com os ventos
Rolar com todas as águas.
(ainda é manhã na poesia de Marta.)
Sei que canção canta o rio
Ao descer da montanha,
E porque chora o vento.
E porque morrem as flores
Ao findar-se o dia.
Sei dos suspiros da chama
E porque chora a fonte.
Sei que sonho encantado
Os olhos se entrefecham.
Que abraços te abraçam
E que beijos te beijam.
Só não sei (quem me dera soubesse)
Ser um sonho nos teus sonhos.

E agora, quem canta Marta?
Não mais tristeza, não mais a vida,
Não mais o amargo desse amargor.
Não mais os sonhos, ó tão querido,
Pobre alimento do meu amor.

Não mais um jeito de despedida,
Não mais um gesto, não mais o adeus
Só bem tranqüilo, pobre querido,
O rio imenso da minha vida,
Rolando manso nos olhos teus.
Mas eis que lhe escapam alguns acenos. De onde vêm?
Incertamente dentro dos meus sonhos,
Tomei as tuas mãos e as coloquei entre
As minhas lembranças invencíveis.

Não me lembro como fui e já nem sei como sou.
Ando cansada da vida, cansada de mim estou.
Onde encontrei olhos tão grandes, esses meus
Olhos castanhos?
Eu me desconheço a mim,
Ando caminhos de sono.

Sigo hoje para o reino,
Onde buscamos encontrar olhos magoados,
Que chorem por nós.
E nesse reino nos será dado
O poder de nos juntarmos
Com a negra podridão de terra
E o suave murmúrio da fonte.


E eis que é noite na poesia de Marta.



(“O Cachoeirense”, 04 a 10/01/1980)

Um comentário:

  1. Foi minha amiguinha de infância! Demos muitas voltas , juntos, na praça Prado Filho!

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