Ruth Guimarães
No ano
passado estive em janeiro no Vale do Paraíba, e era chuva que Deus dava, mas
chuva mesmo, sem um momento de estiada, a água suja inundou a várzea, o bairro
transformou as ruas em amostra da era primordial, as comunicações para os lados
da Bocaina foram interrompidas. Rodaram todas as pontes, exceto as construídas
por Euclides da Cunha. O leite deixou de descer das fazendas da Serra. Pessoal
dos Macacos, das invernadas para além do Cachoeirão, ficou mais uma vez isolado
nos seus píncaros inacessíveis. E era chuva que Deus dava, pródigo Alá. Nesse
ano a água subiu até a laranjeira, e onde havia perfumadas flores e abelhas
doiradas rodopiavam as folhas amarelas em torno das raízes que fora noiva do
sol, nadavam as desaforadas traíras. E então neste ano, fui tarde para o Vale
do Sol, meu Vale. Esperava que os belos dias tivessem vindo. E que me
esperassem, apesar de brigados comigo, por um motivo que contarei depois, o
pássaro, a manhã e a flor. Pois, amigos, era chuva que Deus dava, chuva e mais
chuva, que entrou por fevereiro adentro, estragou o carnaval, molhou a presença
e a paciência, impediu os passeios e ainda por cima não me deixou ir tomar o
tal caldo de cana prometido em tempos que já lá vão pelo amigo Ditinho do Ciano
(continua devendo). Afinal a temporada não ficou estragada de uma vez, por que
arrumaram linhada e anzol, vara de bambu, banco, saco de estopa e chapéu de
palha e os homens da casa acharam jeito de pescar na porta da cozinha, enchendo
cestas e mais cestas de traíra da miúda e corimbatá e vindo todo o santo dia
incomodar a gente com umas enormes fieiras de lambari, para fritar. Até que o
esporte perdeu de vez a graça, depois de ter passado pelas variantes da pesca
de peneira e das tarrafadas na água barrenta do campinho. E viemos embora.
Entrementes, aconteceu a tragédia de Caraguatatuba, e agora leio que as águas
do Paraíba continuam subindo. Rio, meu rio, do Vale do Sol, tornado monstruoso
e semeando a morte pelo caminho. Que devora as colheitas do dourado arroz,
apendoado, fazendo-as apodrecerem na lama. O que empurra com monstruosas mãos
de água assassina as choças dos piraquaras. Mas não quero mais falar desses
assuntos. O pássaro está perdido. A manhã está perdida. E está perdida a flor.
Afinal nada novo.
Lucrécio, há mais de
dois mil anos já afirmava que os deuses, se é que existiam, (ressalva dele) não
se interessavam de maneira nenhuma pelos assuntos humanos.
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