Ruth Guimarães
Contam os velhos caboclos, mestiços de índios, que abaixo de onde nós moramos existe uma outra terra. Diferença que tem deste mundo é pouca. O que existe aqui existe lá, mas é tudo mais bonito. Consta de um campo grande, tão grande que do comecinho não dá pra ver o fim. A vista não alcança. O campo tem grama verde, de um verde claro e lustroso, de canavial depois da chuva. Buriti lá embaixo é arvorezinha, pequenina, altura de uma pessoa. É como cajueiro do cerrado, que em vez de árvore frondosa é arbusto. Quem quiser chupar coquinho de buriti é só estender as mãos e lá estão os frutos maduros, oferecendo-se.
As campinas estão cheias de caça. Muito se vê ali. Anta, capivara, tatu, tamanduá, veadinho campeiro, caça grande e caça de pena, mutum, jacutinga, cajubi, codorna. Há de um tudo, nos encantados campos.
Gente? não se sabe se assiste ali. A caça percorre tranqüila os grandes banhados, sem ninguém que judie dela.
Dizem que os porcos-do-mato procedem de lá.
Uma vez dois índios foram caçar. Aquele não era um dia de sorte, isto é, não era um dia de caçador. Os bichos soverteram pelo mato e não se via um bichim de Deus, unzinho, a ser levado para a taba para acabar moqueado e comido. Por mais que eles percorreram em todos os sentidos a campina grande, nada conseguiam. Até que um deles avistou um tatu. Tatu peva, baixinho, gordo, reboloso, com as orelhinhas pontudas em pé. O animalzinho foi por ali abaixo, correndo, as pernas curtas rendendo pouco, mas encontrou um buraco – e talvez o que já estivesse procurando – barafustou por ele a dentro e desapareceu. O índio deu um grito de raiva e se jogou no chão, bem em cima dessa espécie de túnel cavado pelos tatus, mas não conseguiu alcançar o fujão.
- Eu mostro presse danado se ele vai escapar assim. Vamos lá em casa, parceiro! Vamos pegar um enxadão e cavocar.
E foram. E voltaram. E um deles cavou até ficar com os braços doces. O outro falou:
- Cavando desse jeito, vamos sair do outro lado do mundo e não é isso que eu quero.
- Acontece que eu tenho que pegar esse tatu – clamou o teimoso.
E vá de cavar e vá de cavar, alargando o buraco, terra a dentro, sem encontrar nem aquele, nem nenhum sinal da grande tribo dos tatus. O companheiro chamava:
- Deixe disso! Vamos embora!
- Pode ir, eu fico.
Foi o que fez o companheiro. Farto de gritar, foi embora ligeiro para a taba, enquanto o teimoso ficava ali, cavando e suando, para ir até não sabia onde, procurando o tatu. Quando ele viu, estava embaralhado num fuste de palmeira. Que é isso? Que lugar é esse que tem árvores embaixo do chão? Escorregou pelo espique da palmeira abaixo e logo estava na grande campina de que sempre ouvira os mais velhos falarem. Enquanto ele perlongava os campos encantados, subterrâneos, o companheiro assustado alcançava a taba.
Foi uma balbúrdia na tribo. Corria gente de toda banda e todos queriam saber o que havia.
- Está no fundão! – contava o que tinha desistido – Acabou sumindo para baixo, como quem entra em água grande.
Os velhos abanavam a cabeça e lembravam o que tinham ouvido.
- Ele está vivo. Mas nunca mais há de sair. Quem vai lá não encontra o caminho de volta.
- Então precisamos buscar esse cabeçudo lá embaixo.
- Eu sei o caminho! – o companheiro disse.
- Quando o passaredo anunciou a madrugada, o nhambu-xororó piou alto nas moitas, saiu um bando de índios pelo mato, buscando o tal buraco de tatu. Ora por si, ora guiados pelo companheiro do desaparecido, revistaram as redondezas, por miúdo. Não deixaram uma toca de corujinha campeira que não fosse quase virada do avesso. Mas nem por muito andar conseguiram encontrar o tatu, nem buraco, nem o índio sumido. Retornaram muito encolhidos e não queriam fazer mais nenhuma busca, embora o amigo do sumido ficasse espertando uns e outros: Ele morre lá, ele se acaba.
- Morre nada. Não morre. – Diziam os mais velhos.
E contavam: É uma terra linda, cultivada, tem fruta boa, aguada limpa e caça muita. E mulheres, as mais bonitas do mundo. Lá ninguém conhece guerra nem fome, nem ferimento, nem doença, nem morte. Ele tem sorte muita. Deixem pra lá. Caiu ali, foi sorte.
Daí apareceu o feiticeiro, fez uma pajelança e contou para quem quis escutar o que tinha acontecido. Que o índio achou o caminho de ida para o céu lá de baixo, descendo ao mundo das profundezas. Que nunca mais acharia o caminho de retorno. E que não tinha ficado imortal. Se ninguém o fosse buscar, passaria desse mundo subterrâneo para os campos da morte.
- Ai! – gemeu o amigo – Eu sabia que era a morte.
- Não por enquanto – declarou o feiticeiro.
- Ai! Ai! – chorou a noiva do índio – Eu sei que ele se foi para sempre.
- Para sempre é tempo demais – corrigiu o feiticeiro. E disse mais: quem sabia o caminho dos campos de caça, aqueles, era o danado porco-espinho, que sabe tudo.
Dias e dias o pajé passou na mata, escondido, esperando. De repente, apontou uma vara de porcos selvagens, cada caititu temeroso, de colmilhos pontiagudos, fazendo um ruído horrível de dentes batendo uns contra os outros. Passaram. O pajé foi atrás, de mansinho. A certa altura, eles escorregaram por um buraco, foram descendo e sumindo, até que ficou apenas um caitituzinho magro, no coice do bando. Quando o feiticeiro entrou, que o magruço ia dar um sinal, ele pulou para cima do animal e acabou com ele. E assim entrou no mundo misterioso, que só Tupã e a porcada conheciam. E toca a procurar um índio por aquelas planuras sem fim. Estava quase desistindo. Os queixadas já estavam passando do regresso, quando o encontrou. Lá vieram os dois, o índio e o feiticeiro, andando quando a porcada andava, parando quando ela parava, subindo rampas e saltando valas, até que saíram cá em cima, de volta pra casa.
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