quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Pretérito quase perfeito

Ruth Guimarães

A mercância não desiste. Não nos dá folga. Não nos deixa raciocinar, não pára de produzir novidades. A cada invenção, a cada melhoria e aperfeiçoamento, assimilamos mais uma experiência de desutilidade. Desculpem o palavrão. Ficamos escravos de mais uma necessidade que não nos serve para nada. Porque não nos faz crescer em alma e dignidade. E nem mesmo em saúde. O automóvel e o estofado do escritório nos dão hemorróidas. O microfone, a caixa de som, o alto-falante nos deixam surdos. E não se fala das momentosas novidades do aquecimento geral, do buraco negro, do ozônio, da poluição, dos rios e dos ares e por aí afora. Não há nenhum invento, como o avião, por exemplo, do qual o uso, o abuso, o mau uso, não transformem em inimigo da humanidade. Está aí o plástico. Estão aí as usinas nucleares. A serra elétrica. A lambreta. O urutum e a polícia. Os chefes de governo, a pseudo-democracia e os políticos.

O que perdemos de mais importante nessa modernidade mítica é o valor como pessoa humana, da pessoa humana. A corda arrebenta pelo lado mais fraco. O que foi feito do pobre, com sua bolsa escolar a tiracolo e a bolsa família atropelada no lombo? Acabaram com o pobre, apesar do aviso de Cristo de que sempre o pobre existiria. A pobreza modernizada desconhece o desemprego útil, por mal dos seus pecados. E a praga pior é a do desemprego crônico, geralmente por falta de capacitação? O que estão fazendo para capacitar o pobre?

Não quero entrar na discussão do que seja liberdade. Das criaturas de espírito mais livre o mais belo é o vagamundo. Ele trabalha? Mais do que os outros. Entre os vagamundos podemos contar o cientista louco, os loucos apaixonados, os poetas (já de muito banidos da república de Platão), os artistas sem papelada, sem horário, sem calendário.

As exigências da vida acelerada estão acabando com esse tipo. Os que ficamos dentro da cerca do emprego, do patronato, da função pública, da carteira assinada, nós os eunucos não somos livres.

Agora me digam uma coisa: uma lei tanto matemática quanto biológica e quanto social, nos afirma que o todo é igual à soma das partes que o constituem. Dá para fazer um povo livre quando cada indivíduo é um escravo?

A busca da liberdade acabou, substituída pela busca do direito de consumo. Pertencemos ao vínculo artificial criado copiosamente e cuidadosamente mantido entre mercadoria e a necessidade criada de a possuir. Não temos nem para nosso consolo a esperança de que essas mercadorias mirabolantes, apresentadas com tanta ênfase, tanto colorido, tanta música, pagáveis em 12 vezes, 24 vezes, 36 vezes, tenham distribuição eqüitativa. E com que arte se ativa o impulso demente de comprar e comprar e comprar. A atriz fulana tem quinhentos pares de sapatos, apesar de ter somente dois pés. As roupas nada vestem mas custam caro. Acabamos sendo possuídos pelo que temos.

Um homem pertence ao seu carro zero, e de marca, e ao seu telefone, não é o contrário. A conjugação não é eu possuo e sim sou possuído.

Também perdemos o nosso espaço de silêncio, invadido por certa espécie de música barulhenta, escapamento de carros, campanhas de venda, campainhas, o rádio do vizinho e o nosso, a TV de toda a gente, propagandistas.

Os acessos da maldade humana, guerra e outras barbáries, são cíclicos, como uma espécie de febre terça da humanidade. Em cada recaída, carecem os salvadores. As religiões estendem as mãos procurando mitigar as dores. Num desses acessos malsãos, Voltaire preconizava a volta à Natureza. Que fazem e que dizem agora os ambientalistas?

A viagem da vida não tem regresso. O progresso é irreversível, e é com ele que temos de conviver. O passo dado para a frente não se repete para trás. Quem mais se adapta ao ferro de brasa, de passar roupa? À água do poço? Ao fogão de lenha? À vela? À lamparina? Ao carro de bois?

Nada de saudosismos, pois. O que lá foi, lá foi.

Mas bem que eu gostaria de voltar aos rios limpos.

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