Ruth Guimarães
Um homem não sabia a quem convidar para compadre de tantos filhos que já tinha. Quando nasceu o caçula, falou à mulher que convidaria até o diabo para padrinho do menino. Saiu e encontrou um homem muito bem apessoado. Convidou-o para compadre e ele aceitou.
Depois do batizado, o padrinho carregou o afilhado. Ficou com ele sete anos. O pai ficou meio assustado, porque o padrinho nunca mais aparecia com o garoto e então veio a madrinha, que era Nossa Senhora, e se ofereceu para procurá-lo.
Foi. O menino estava no inferno e o padrinho tinha lhe mostrado todos os quartos. Em cada quarto estava uma cama cheia de fogo. A cama onde havia mais labaredas estava separada das outras. O diabo falou: "Esta cama é para o maior ladrão do mundo. O ladrão Gaião".
Nossa Senhora apareceu e levou o menino para a casa dos pais. Ele contou então que o padrinho era o diabo e contou tudo o que tinha visto no inferno.
O ladrão Gaião soube e veio conversar com ele. "Menino, é verdade que você viu no inferno a cama cheia de labaredas que era para mim?" "Vi, sim. Meu padrinho é o diabo e me mostrou." Então o ladrão tornou a perguntar: "Você tem coragem?" "Tenho, sim." "Tem coragem de me cortar em pedacinhos?" "Tenho."
Foram os dois para o meio do mato. O ladrão Gaião puxou uma faca e disse: "Vá me cortando em pedaços. Cada gemido ou cada grito que eu der, diga: 'Seja tudo pelo amor de Deus'."
O garoto assim fez.Cortou o ladrão em pedacinhos. Quando ele gemia, o menino falava: "Seja tudo pelo amor de Deus!" Em vista do seu arrependimento e do seu martírio, Deus o perdoou e o grande ladrão foi para o céu.
Acontece que no alto de um morro deserto morava um monge que fazia penitência. A vida que levava era tão agradável a Deus, que era servido pelos anjos. Estes lhe traziam o sustento de cada dia.
No dia da morte do ladrão, o almoço demorou mais. "Vocês já ficaram brincando pelo caminho, outra vez?" ralhou quando os anjos chegaram. "Não, senhor. Hoje nos demoramos porque houve festa no céu. O senhor não soube da morte do ladrão Gaião? Pois ele se arrependeu do que fez e foi perdoado." O monge então falou:"Se o ladrão entrou no céu, quanto mais eu, que já em vida sou servido pelos anjos!"
Só por isso, o monge se perdeu e a cama cheia de labaredas do inferno ficou para ele.
(Colhida no Vale do Paraíba em 1940)
* * *
O ladrão Gaião era o maior ladrão do mundo. E era atrevido, arrogante e perverso.
Pois esse mau tinha um irmão que era um santo. Tão santo, que, em vida, já comia pela mão dos anjos. Todos os dias, nem bem dava meio-dia, vinham os anjos trazer-lhe maná do céu, para o seu sustento.
Foi um dia, morreu uma criança sem batizar. Bateu no céu mas foi-lhe negada entrada. Mas tanto chorou, tanto pediu, que Deus ficou com muita pena e disse: "Tome este copo e volte à terra. Quando você o tiver enchido de água limpa, bem limpa, pode voltar que eu abro a porta".
O menino saiu chorando e, em todas as fontes enchia o copo. Olhava-o contra o sol — a água estava suja. Então começou a clamar:
Hoje mesmo nasci
Hoje mesmo me criei
Hoje mesmo morri
Hoje mesmo me perdi
O ladrão Gaião que estava sentado em cima de uma pedra escutou aquilo e pensou: "Se aquele que hoje mesmo nasceu e morreu, assim mesmo se perdeu, o que será de mim que sou tão pecador?"
Começou a pensar nos seus crimes e teve um arrependimento tão profundo que chorou. O menino passou por ele e viu as lágrimas. Aparou-as com o copo. Quando o colocou diante da luz, estavam tão limpas que cintilavam. Louco de alegria, correu ao céu e pôde entrar.
Nesse mesmo dia o ladrão morreu e também foi para o céu. E, com tudo isso, os anjos atrasaram o almoço do santo. Bateu meio-dia e nada de almoço. Bateu uma hora e nada. Lá pelas três horas vieram os anjos. O santo pergunto: "O que foi que vocês andaram fazendo no caminho, que só agora é que estão chegando?"
Então os anjos contaram: "O senhor não sabe. Hoje houve festa no céu". "Por que?" "Porque o ladrão Gaião se arrependeu e salvou-se. Foi para o céu e nós fizemos uma festa." O santo teve um pequenino pensamento vaidoso. Um só e foi o bastante. Pensou: "Se o ladrão Gaião, que era tão pecador, se salvou, e eu então que já como pela mão dos anjos..."
No outro dia, o santo esperou, e no outro, e, depois, no outro. Os anjos nunca mais lhe apareceram para trazer comida.
(Contada pela mãe da autora)
(Guimarães, Ruth. Os filhos do medo. Porto Alegre, Editora Globo, 1950 (Coleção Autores Brasileiros, 34), p.33-35)
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