Ruth Guimarães
Quando eu era muito pequena tinha duas idiossincrasias. Não gostava de gente que não apreciava sorvete e acendiam-se-me todos os altos fogos da ira contra aquele que não ficava boquiaberto com o mundo do circo.
Como se vê, tinha grande vontade de viver, sabia o que queria e aplicava o aforismo do filósofo que nos garantiu que o homem é a medida do homem. Somente que se me pedissem para explicar o porquê de atitude tão radical, eu não saberia.
De lá pra cá, o mundo mudou muito, principalmente em velocidade. Inesperadamente estamos correndo, voando, uns e outros nos atropelando, é preciso correr, passar na frente, ultrapassar. Que se passa? Que buscamos, afinal? Quem sabe ficou lá atrás, perdido, jogado, esquecido? Mas ninguém pára, ninguém retrocede; é tudo de roldão, como as catadupas, a ventania, a febre, a inconstância.
Contou-me Peregrino Jr. certa vez que foi do Rio de Janeiro ao Ceará, onde iria ser padrinho de casamento, e teve que fazê-lo em um dia, por causa dos seus múltiplos afazeres. Tomou um avião do Rio, chegou em Fortaleza, tomou um carro para a cidade do interior onde ocorreria o casamento e levou nisso mais ou menos oito horas. Comentando o feito com um amigo, sisudo coronel de vastas terras, e muito mais vastas filosofias, disse o amigo, alisando o cavanhaque:
- Seu compadre! Este mundo está encolhendo...
A velocidade trouxe a perda do ritmo. E o ritmo é medida de vida. É o uniforme bater do coração, é o passo na mesma medida sempre. Se virmos um bêbado atravessando a rua, já sabemos que ele exorbitou. O pulsar é igual, o piscar, a respiração, a cópula, tudo regular e sem atropelos. Todos nós já vimos o jovem pai colocar o filho sobre os joelhos e recitar o velho trava-língua, enquanto marca o compasso: “Serra, serra, serrador, quem serrar é meu amor!...” Que faz, tão infantil essa criatura adulta? Nem ele sabe. Mas está ensinando ritmo ao seu filho, que sem ele não poderá viver harmonicamente.
Hoje, com as novas condições de vida do idoso, está se desenvolvendo um gosto novo pela dança, pela música, isto é, pelo ritmo. Faz parte do desenvolvimento e da transformação e age sobre todos, pelas leis que estudamos em folclore.
No atropelo da vida que se convencionou chamar moderna, ainda restam os belos gestos, e aqui volto gostosamente aos meus tempos de criança. O circo. O circo e os palhaços, as cores, as luzes, os vôos nos trapézios, os malabares, aquele país das fadas, onde se penetra para sonhar.
E aquelas mulheres esplendorosas, como deusas, que sabem andar ondulado, e dançar e existir...
Outras cenas de reino encantado são as cerimônias das religiões com os sons celestiais, a presença de Deus e os longos belos gestos dos sacerdotes entre neve e dourados, em acenos longos e brandos.
Estamos afugentando o ritmo e a beleza da vida com o nosso afã. Mas nem tudo está perdido. Os gestos se repetem. Aos agraciados que renovarão os valores de que carecemos.
Ruth Cardoso e os belos gestos.
Ruth Cardoso singela lutadora à frente das reivindicações pela conquista do bem viver e dos novos valores.
Ruth Cardoso e os belos gestos.
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