Ruth Guimarães
Ivã: você sabe que chegamos à noite a Salvador e o impacto da doce terra estranha que sobre nós agiu deve ter agido sobre você também, quando foi para ali, visado de Alagoas. A primeira manhã no refúgio da Escola de Polícia, que era o seu, teve qualquer coisa de miraculoso. Como se tivéssemos entrado num país de maravilhas, assim como um regresso ao Éden, com muitos Adões, incongruentes, de coturno e roupa caqui. Fontes não havia. E seria positivamente escandaloso chamar de maná a bóia do rancho dos oficiais. Como você bem sabe. Mas havia coqueiros, quantos! palmas dançarinas ao toque muito leve que vinha do mar ali perto. A areia no chão, de um cinza azulado, rechinava sob o passo. Havia arapongas nas forquilhas, tinindo, zinido de cigarras e zoeira de insetos. Camaleões com rajas imitando folhas secas, olho de berilo chispando em torno da risca preta da pupila, azougue vivo, disparavam pelo meio do capim. E aí vimos as emas, Ivã Marinho, você tem que se lembrar das emas. Nos dias de desfile abriam o cortejo nas ruas, na frente dos batalhões da Polícia, elas as emas, impassíveis entres a alas de povo, bicharocos majestosos, de passo balanceado, certos no andar, marchando ao compasso das caixas de guerra. E que marcha! Eu que diga, que as tive diante dos olhos quase um mês. Desajeitadas, com meio corpo coberto de ásperas penas cinzentas, estavam vivas e já tinham jeito de espanador. E o cômico rebolado de anca, se é que aquilo se chama anca. E o longo pescoço, e o bico forte, pastando a grama do pátio? Mansas, agitavam sem rumor, às vezes, num lento espreguiçamento, o cotoco inútil das asas. Faziam parte do paraíso, com um anjo à porta, não com a espada chamejante, encurvada em sss, mas com um prosaico fuzil, tirado do corpo da guarda. Anjo baiano, mulato, devoto de Oxalá e Janaína Saravá! Nesse quadro, os oficiais recém-formados, você inclusive, mal saídos da adolescência, pareciam estar representando um papel que não lhes assentava bem à demasiada juventude, à luz dos olhos ainda encantados da vida, ao rosto imberbe, ou quase, ao passo ligeiro, impaciente de futuras andanças, à boca sem vinco, onde pela manhã palpitavam os beijos com que sonharam. E, em meio dessa lembrança, chega a sua carta, em que outro quadro se sobrepõe. Quadro sem paraíso: é Ivã Marinho, de chapéu de couro e roupa de mescla azul, disfarçado como um sertanejo ou como um bandoleiro, que corta as caatingas, perseguindo o cangaceiro. A temperatura mata, diz você. O calor sufoca. Ah! Eu conheço a caatinga, Ivã Marinho, e ainda não voltei do choque que me deu a árida, seca, restolhada, espinhenta, agressiva caatinga de arbustos enfezados, eriçada de pontas e acúleos. Inimiga.
Ivã Marinho, caçador de gente. Não ouso fazer votos para que Deus o proteja e eu o desejo, certamente – porque com tanta gente sem culpa, com tanta boca sem pão e tanta vida sem justiça, eu nem sei, francamente, de que lado Deus está, nesses sertões.
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