segunda-feira, 19 de agosto de 2013

São Bento, médico nos cacauais

Ruth Guimarães

- Por quanto tempo se colhe cacau aqui? 

- O temporão é em maio. O miúdo em junho e julho. O de tempo em setembro. O tardio vai até novembro. Ai é a época do paradeiro. Me­tade de nós vai embora, caçar serviço em outras paragens. Que o que sobra é pouco, só podar e roçar. 

Contam os antigos que, quando Deus fez o cacaueiro, botou junto dele dois bichos, para cacau não se acabar mais nunca: macaco jupará para replantio (pois o macaquinho semeia por toda a banda ­nesse chão molhado e gordo), e a formiga pixixica, para comer pra­ga que ataca as folhas. Além disso, macaco jupará é carne de caça - macia, de primeira. E isto dizendo, o homem se curva para a larga folha do cacaueiro, palminérvia, lobadas de bordos repicados, como largas mãos abertas, a nervura traçando desenhos complicados no limbo carnudo. 

Lá está a formiguinha pixixica, a que Deus criou para proteger o cacau. Ruiva, descambando para o fulvo, quase dourada ao sol, recobrindo grandes áreas da folha. 

- De que cor é o macaco jupará? 

- Amarelo fosco, para o claro. 

Ele surpreende meu olhar para as árvores carregadas: 

- Tudo aqui é amarelo. Até as cobras. Cobra que dá mais é a papa-pinto, amarelona. A pica-jaca também é amarela. 

- Muita gente mordida? - Pois antão? 

- Os fazendeiros têm soro, de prontidão, para as emergências? 

- Soro? Pra falar a verdade, não sei. Soro de pobre é re­za. Pra afastar a cobra a gente chama são Bento; numa reza forte, ­que serve também para fechar o corpo: 

"Valha-me a preciosa cruz do Senhor são Bento, e as preciosas letras que se encerram dentro de poder e encerramento. Eu (fulano) sempre livre hei de ser ­do fogo, ferro, de ares, de feitiço, de peste de bichos peçonhentos, pois tenho para minha defesa Je­sus Cristo e o Senhor são Bento. Na arca de Nóe me meto, com a chave de são Pedro me fecho, com as três pessoas da Santíssima Trindade me acompanho, Padre, Filho, Espírito Santo, amém". 

- Bom, para rezar quando se está no mato, ou trazer um bentinho, com a reza escrita num papel dobrado, pendurado ao pescoço. 

- Isso é antes, - digo - E depois? 

- Depois do que? - pergunta o caboclo, com certo espanto. 

- Quando a cobra chega a morder, como é que se faz? 

- Pra mordida de cobra hai muitas rezas poderosas. Esta e 

urna: 

"Estava o Senhor para fazer uma longa viagem. Disse: José, vamos. Ai, Senhor, não posso. Estou mordido de cobra. Disse o Senhor três vezes: José vamos! José vamos! que as­sim como eu fiquei bom destas cinco chagas, tu sararás dessa mordida.” 

- Enquanto um reza, outro corta a ferida em cruz com uma faca afiada, e chupa o sangue, depois de enxaguara boca com pinga e fumo e de cuspir três vezes. 

- Mas não são só essas cobras de que falei que existem. ­Tem a coral, bonita como uma fita e venenosa como o diabo. A casca­vel, cobra do cão. A surucucu, chamada apaga-fogo. 

- Venenosa? 

- Nossa! Diz-que a cascavel e a surucucu estavam conversando um dia no cacaual, e a cascavel falava se gloriando: "Quando eu ferro o dente num cara, ele pode fazer o testamento, porque des­sa não escapa. E a outra, cheia de soberba: Pois eu, minha irmã, se acontece de morder o bicho-homem, tenho que sair correndo do lugar, para o defunto não cair em riba de mim".

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