Ruth Guimarães
Não direi que os presságios desse casamento foram funestos, mas que se prestaram a muitas brincadeiras, mescladas de alguma supersticiosa ansiedade, porque o noivo era Guerra e eles se casaram na igrejinha da rua do Carmo, chamada de Nossa Senhora da Boa Morte, uma pequena, sombria, quieta, acho que todos a conhecem. Nem o bulício de um casamento e as garridas toaletes conseguem diminuir-lhe o silêncio. Sem querer, entramos em pontas de pés. A pia lustral, quase à entrada, à esquerda, tinha um brilho líquido, diluído. Os dourados e os vermelhos solenes faziam com que contivéssemos a voz. Sentávamos nos bancos escuros, com as costas eretas, os olhos fixos no altar-mor, lavrado e filigranado, em pau-rosa e ouro. As toalhas dos altares, de linho bordado a mão, à boa e sóbria maneira antiga, cheiravam a sândalo, a incenso, a manjericão, a poejo. Elza tinha uma almazinha corajosa e era toda lança e lírio. Desistira da festa de formatura, para se casar, e assistiu da plateia do Municipal a glória das outras, todas em vestidos vaporosos, rosa-antigo, menos ela, a primeira aluna da turma, menos eu, que mudava de rumo, por desorientação e cansaço, menos Mafalda, que lá estava sim, mas não em rosa-antigo, nem em sedas leves nem em modelos de adolescente, mas num vestido colante, rebelde, destoante, ousado, de colorido violento, como uma estranha flor de coral entre rosas de Santa Teresa. Sem se importar com os comentários, Elza levou um enxovalzinho de bebê, todo em rosa, entre os finos bordados do enxoval. Isto não aconteceu ontem, nem no ano passado. Ela está palmilhando como noiva, novamente, a mesma nave da igrejinha da Boa Morte, revivendo a passada cerimônia, na bênção das bodas de prata. Também o tempo já lhe espargiu alguma prata nos cabelos. Mas, insondáveis arcanos! não teve filhos. Não teve filhos, ela que se dispunha, cheia de boa vontade, a concebê-los. Que ia tão sôfrega, tão fagueira, tão alegremente dona de um enxovalzinho cor-de-rosa de bebê! Não sei o que dizer-lhe neste epitalâmio, senão que só pelo amor vale a vida, e em amor e graça ela viveu os cinco lustros que passaram. Também poderia afirmar que a continuação da vida está apenas na alma imortal, não soubesse ela dessas coisas melhor do que eu, e não fosse a sua crença tão perfeita. E não soubesse ela que o único bem é a conformação com a vontade divina. Pois eu que tenho nove filhos e não sei se é um bem possuí-los, apesar dos momentos de inefável felicidade que nos dão. Ninguém pode dizer que é feliz, dizia o filósofo, a não ser no seu último dia, pois ó o destino sabe as reviravoltas que estão para vir. E um que também não teve filhos dava como saída “desta negra vida”: “Não tive filhos. Não deixei a ninguém o legado da nossa miséria.” Há um outro saldo não mencionado. Quem não teve filhos livrou-se do terror de perdê-los, se é que já não é perdê-los não os ter tido. Eu vejo Elza novamente, miúda, frágil, doce, com um pequeno riso comovido, lança e lírio, e não entendo, eu não entendo por que Deus quer dar filhos, teima em confiá-los e tantas que os rejeitam.
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