Ruth Guimarães
Foi no comecinho do mundo. Ainda se empilhavam para um lado as plantas, para outro as estrelas, numa primeira tentativa de classificação. O Senhor passeava nos jardins, e cofiava a comprida barba branca, antes de iniciar o exaustivo trabalho do dia. Os bichos se agitavam embaralhados, numa confusão medonha. O tigre rugia no reduto das ovelhas; os cordeirinhos recém-nascidos baliam, achegando-se confiantemente ao leão e à pantera. Não tinham ainda aprendido o que era a crueldade e o que era o medo. Animais de todas as cores e feitios, juntos.
Tudo aquilo, para separar por espécies e famílias: aves pernaltas nas várzeas, as de rapina nas altas montanhas, os palmípedes nas lagoas, os leões nos desertos da África, os ursos nas florestas, os pinguins na neve, as baleias nos mares. O beija-flor junto às corolas macias, de muitas cores. O pelicano junto ao peixe do rio. A gazela, de pernas rápidas, para correr das feras carniceiras. A girafa, de comprido pescoço, para comer o brotinho mais tenro no cimo das árvores. Ainda havia que determinar os carnívoros e os herbívoros. O enorme elefante de boa paz, a pequena cobra de presas perigosas.
Tanta coisa!
O Senhor suspirou, e a aragem passou pelas trêmulas folhas. Daí, principiou a longa tarefa. Lobo para cá, carneirinho para lá. Camelo para cá, hiena para lá. Depois, começou a separar os bichos de pelo dos bichos de pena. Os de quatro pés, dos que tinham dois pés. Os de escama, dos pelados. Os mochos, dos chifrudos. Os de sangue quente e os de sangue frio. Os que eram carne e os que eram peixes.
- Pra cá, tudo que é carne.
A longa procissão dos animais que seriam de corte se deslocou para a esquerda. Foram os grandes bois mugidores; os búfalos escuros; a caça de boa carne, anta, capivara, veado, javali; as irarinhas papa-mel; os alces de galhadas cheias de pontas; o porco, fuçando, já, em busca de comida.
O Lagarto viu o movimento. Suas unhas compridas riscaram o chão, o rabo coleou, batendo o solo de um lado e de outro e ele pulou para a esquerda, arregalando mais os olhos, esbugalhados por natureza.
- Eu quero ser carne! - gritou.
- Pois seja! - disse o Senhor.
E sua mão poderosa, com um gesto, endossou a decisão do intrometido réptil.
Foi. O Lagarto começou a ondular numa sapequice sem igual entre os animais de músculos vermelhos e sangue quente.
Então, o Senhor quis povoar os rios e os mares.
- Para a direita, tudo quanto for peixe.
Logo, para as águas, puseram-se a saltar os peixinhos de escamas de prata, lambaris de rabo vermelho, saguirus de couro amarelo-azulado, traíras, jaús, pintados, mandis. Incluídos entre os peixes, foram outros animais de carne branca e de sangue frio: cobras e tartarugas, jacarés-de-papo-amarelo, a rã e a perereca.
O Lagarto tornou a esbugalhar os olhos, por si saltados, e gritou:
- Eu quero ser peixe!
E pulou na água.
O Senhor não ratificou com o gesto, dessa vez, o intrometido do Lagarto. Deixou-o ir.
Por isso - dizem - o lagarto, que queria ser muita coisa, não é carne, nem é peixe.
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