Ruth Guimarães
Não. Esta notícia não foi veiculada pela Globo. Não houve sangue derramado nem escândalo. Mas essas portarias e ordens e decretos, tudo que proíbe sempre fere de ricochete alguma coisa que a gente ama.
Proíbe-se comerciar espalhando mercadorias no chão, pelas ruas da cidade. No chão, nos tabuleiros, em mesinhas, cavaletes. A proibição está bem, a gritaria dos camelôs era mesmo indecente, e como lá se diz, fere os nossos foros de cidade civilizada. A bugiganga nas calçadas incomodava o passante apressado e o senso estético.
Mas havia uns livros velhos, por aí, no caminho de quantos passos perdidos quando o sebo ainda estava nas ruas.
Quantos livros! De quantos precisamos, quanto nos interessam, quantos nos agradam, quantos os namoramos nos mostruários e, engraçado! Dá para a gente comprar! A proibição de se vender o livro usado no centro, no chão, no caminho, o livro arrolado como bugiganga, para efeito de proibição, isso é que dói.
No Oriente havia escribas e ainda os há, sentados nas ruas, de pernas cruzadas, à espera de fregueses. Como no filme Central do Brasil, onde a escriba Fernanda Montenegro montava a sua tendinha de escrever cartas na estação da estrada de ferro. Esse é um clamante reclamo negativo. Lá e cá. Onde há escribas, é que no povo há pouco quem escreva. Entretanto, onde há livros em todos os lugares é que há muito quem leia. Isto devia lisonjear o nosso gosto pela exibição da sabedoria e do resto. Topar com livrarias ambulantes devia agradar especialmente ao nosso mulatismo inconvencional. Que se vendessem livros em todos os cantos, em todas as bibocas e em todas as esquinas da cidade. Em frente ao Municipal, à Prefeitura, nas calçadas. Não seria feio, antes pelo contrário. Não é a exibição de livros mas a ausência deles que desdoura.
Tirem os pedintes do centro, os pontos de ônibus, os ambulantes, as canetas-tinteiro, os suspensórios de matéria plástica. Tirem os guardas, o sossego, a liberdade. Tirem as palmeiras, as marquises, a sombra, as escolas de samba. Mas deixassem os livros.
Via-se muita gente em traje de serviço comprando livros no meio da rua, folheando-os sem constrangimento. Lá estavam eles, os amigos. Pedreiros, gente do serviço braçal, operários, e outros que (tenho certeza) nunca entraram numa livraria, compravam livros.
A algumas pessoas, de poucas luzes e de dinheiro curto, as livrarias intimidam. São enormes e sombrias, como igrejas. E os livros, austeros, em negro e marrom ou vermelho, com letras douradas, tudo inspira temor. Acresce que os balconistas da livraria, de tanto pegar em livros, adquirem sabedoria por osmose. Ai do freguês que pedir nas livrarias-templo um Secretário Amoroso ou Livro dos Sonhos – não o do Jorge Luis Borges, mas aquele mesmo de jogar no bicho – Então o recurso é olhar as vitrinas.
Não posso, mas não posso mesmo, deixar de pensar num velho desenho animado, em que um menino nas vésperas de Natal olhava cobiçoso os doces de uma grande casa. Lá estavam, belos, coloridos, tentadores, representando todas as insatisfações e todas as tentações do mundo. O menino do meu desenho olhava; e lambia o vidro claro da vitrina.
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