segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O processo

Ruth Guimarães

Mané Borjão, o subdelegado, espreguiçou-se como um hipopótamo mal humorado, uaaaau! Aai! Aaaaai! espichando as pernas compridas embaixo da mesa. O pezão quarenta e dois apareceu do outro lado, calçado com botinas de solas de pneu. Troço chato, siô, ficar sozinho dessa maneira, nem um preso ao menos para jogar palitinho. Deu uma espiada pela janela. Mormação de meio-dia espantava toda a gente para as tocas. Não vê que dava de ficar na rua, nem andar andando à toa. Preguiça, gente! Preguiça!

Mané Borjão se espreguiçou de súbito, alerta, esqueceu-se do calor e da solidão. Lá vinha pela rua principal, outra vez, a vaca do João Venâncio. A molecada ia de pedrada em cima dela. Uns corriam-lhe no encalço e outros a cercavam. Esbaforida, ela investiu de cabeça baixa, ventas abertas, bufando, contra um grupo que se apartara. E, com pouco, estrebuchava no chão um meninozinho, e não dos mais alvoroçados. 

Era um pequenito de calcinhas rasgadas, de olhos grandes e pretos, pezinho no chão, ligeiro para correr. Ria muito, encantado, parecia que era a primeira vez que entrava no perigoso brinquedo. Fora do alcance da vaca enfrenesiada, desaparecera-lhe o temor da expressão. Havia festa no seu arzinho radiante, a delicada curva das faces que o riso distendia, reluzia de contentamento. Estava de tal maneira comovente em sua alegria sem motivo, excesso de vida e de candura, ausência de pensamento e de cuidados, infância! ah! infância! que dava gosto vê-lo.

Colheu-o nas guampas a vaca furiosa, quando ele escorregava barranco abaixo para brincar outra vez. Esperneou um pouquinho, muito pouco. O grito foi curto, débil, agudo como um pio de pássaro que a serpente apanhou. Quase se esperava encontrar no chão, palpitante, quente ainda, todo plumas, mole e macio, um passarinho morto.

Borjão desceu a rua correndo e mandou com voz raivosa recolher o animal ao curral do Conselho.

Era tarde para uma providência dessas e foi isso mesmo que o Meritíssimo falou, com entonação muito glacial, encarando fixo o pobre que ainda tremia, compadecido do meninozinho (alguém falou que se chamava Pedrinho Só-Só, e era neto do velho Laurenciano. Não estava nem na escola ainda).

- Mas eu... mas o João Venâncio... pronunciou Borjão, engasgado. A gente cansou de falar... A gente não podia prender no curral do Conselho... que o João Venâncio... que a política... que o senhor sabe... quem é o delegado...

- Abra processo! silvou a autoridade entre dentes. São esses privilégios e essas impunidades.

Não completou o pensamento nem abriu reticências. O que disse era definitivo.

- Então o caso... começou o outro.

- Abra processo! gritou o Meritíssimo, subitamente encolerizado. Que o culpado pague!

Mané Borjão estremeceu. Atarantado foi tratando de sair, tropeçou no tapete, prendeu o bolso do paletó na ponta da mesa. Desprendeu-se com dedos trêmulos, murmurando um desculpe, sim senhor, e sem querer, ao sair bateu a porta com estrondo. Ainda empurrou devagarinho a porta, outra vez para contar que não tinha sido de propósito. A autoridade estava de olhos entrecerrados, não reparou nele. Borjão suspirou e tornou a sair, pé antepé.

Fora da sala teve uma atitude muito esquisita. Parou pensativo, resmungou, ergueu os ombros, estendeu as mãos com as palmas para cima, tornou a encolher os ombros. Os que o encontraram repararam que parecia muito perplexo. E na pensão onde morava, contaram que passou a noite inteira escrevendo. Já passava das duas quando dona Binoca bateu de leve na porta com os nós dos dedos.

- O senhor está sentindo alguma coisa, sêo Borjão? Quem sabe um chá?

- Eu? Eu estou sentindo? bradou ele enfurecido. Ele é que está.

- Ele quem, sêo Borjão?

Escutou um pouco, não ouvia nada, abalou encafifada para o quarto.

(O promotor substituto, dr. Célio Varajão, jamais se esquecerá do estupor que o acometeu, antes do acesso de riso, quando leu todo o arrazoado do Mané Borjão, que acabava assim:

“Perguntada sobre o motivo do seu ato, a indiciada nada respondeu, porquanto se tratava de uma vaca”.

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