Ruth Guimarães
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Foto de Botelho Netto |
A noite começa com um bate-papo no botequim do Quinzinho, na passagem da linha, e um passeio à ponte, para ver a água. A matriz de Santo Antonio está de luzes acesas e há uma catedral lá em cima, perto do céu, encostada às estrelas, e outra no fundo d’água, trêmula, quando a noite vem. Os salgueiros se descabelam na água escura,. A casa branquinha do Espanhol, debruçada na corrente rápida, agora com a cheia, quando o rio corre a oito quilômetros por hora, é a última que desaparece. Desde o crepúsculo é um fantasma branco, meio doido, com um reflexo fugidio, aos pés. As luzes dos postes se entristecem aos poucos, lívidas e melancólicas. Longe, à distância de uma pedrada uma da outra. As ruas negras deslizam à sombra, muito compridas, uma que vai ter à estação enorme como um castelo de pedra, e outra que vai ao depósito, e outra que sobe ladeiras, num cansaço que dá dispneia, outra que vara a cidade e foge para o Pitéu. No jardim, uns raros casais nos bancos doados pelos comerciantes. As árvores gesticulam agitando as comas desesperadas. Nenhuma floriu. Na pérgula sobem trepadeiras desanimadas. A sessão de cinema termina às dez horas. Até muito tarde, as casas mantêm escancarados os olhos largos das janelas. Que calor! A noite é límpida de um azul profundo, e dói um pouco na gente. As estrelas têm voz, como queria o poeta e a noite também tem miríades de ruídos incessantes, tem grilos e bichinhos ciciando e zunindo, e assobiando, e cricrilando, e canzoando e guaiando , e sussurrando e gemendo, tem o saci e o peixe-frito, e o sabiá-uma e a corujinha do campo, e o curiango, triste, triste, cotando que seu amor morreu. E tem o apito comprido do trem na noite, e o latido do cão sem dono, no sereno, e o miado dos gatos famintos nos telhados, e um choro de criança que se repete de quando em quando, enervante, vindo não sei de onde. Debruçada na janela, onde desabotoa a flor de sangue do gerânio, é possível ver as estrelas, e possivelmente ouvi-las. Por um rápido instante é possível recapturar o tempo perdido.
As janelas se fecham tarde. Bem mais tarde ainda, nas esquinas e completamente silenciosas, se ergue a voz dos seresteiros. Clair geme em notas de veludo, canções de amor. Outra voz que não reconheço de um seresteiro desesperado “por seu desdém” (talvez seja o Edgard que ama de amor sem ventura a moreninha mais bonita da Margem Esquerda) entoa, uns atrás dos outros, uns queixumes em voz avinhada de tenor. Sentado na calçada, Jaiminho toca violão.
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