segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Dança do cururu

Ruth Guimarães

— Boa tarde, Agostinho.

Recebe-nos a porta Agostinho Aguiar, o famoso cantador, moreno e meão, lenço de pintinhas branco e preto no pescoço, um riso largo e hospitaleiro. É cururueiro há dezesseis anos, bicampeão dos concursos do Centro de Folclore de Piracicaba, tem muitas medalhas, uma delas concedida por Planalto — a revista paulistana que promoveu a ida de violeiros a São Paulo. Agostinho foi um dos cincos que cantaram para Mário de Andrade, no Parque Antártica, na capital, em 1941. O cururu é a casa dele, nessa gloriosa tarde piracicabana de feriado. Olho em torno com alguma curiosidade. A sala tem cortinas claras nas janelas, um antigo relógio de parede, de madeira negra, pinga as horas em um andante tranquilo. O chão é um alegre tabuleiro vermelho de tijolos lavados.

Já estão todos reunidos. Villanova apareceu pitorescamente de botas. Já tinha reparado nele antes, na caninha-verde não só pela vivacidade como também porque é muito risonho. João Chiarini, fundador do Centro de Folclore de Piracicaba, veio conosco e imediatamente está em todos os lugares ao mesmo tempo, não sei como, ubíquo e solícito, numa atividade em gritante contraste com a sua expressão quieta demais e com seus desolados bigodes de chinês. Serafim Barbosa se apresentou de ponto em branco. Não fala muito, apenas sorri, e tem belos dentes. Santão também está de branco.

— Por que o chamam Santão? É muito comportado?

— É sim... — respondem, — quando dorme.

Zico Mineiro chegou atrasado, depois de nós, e já tinha bebido um pouco para afogar as mágoas. Ainda vem lúcido e toca bem, dentro do compasso, uma espécie de reco-reco de taquara. Está firme sobre as pernas e responde depressa a uma pergunta que não foi feita:

— Ué! que graça tem cururu sem cachaça?

— O que é cururu, afinal de contas?

— Só dá por aqui, na baixa Sorocabana — responde Agostinho de maneira indireta.

E se alguém me perguntar, agora, depois de tudo o que vi, o que é dança do cururu, serei obrigada a confessar honestamente: "Sei lá!" pois cururu é muita coisa, mas dança mesmo não é.

123 carreiras

O conjunto de cururueiros não poderia ser mais eclético. Há dois caboclos — Tico Siqueira e Sebastião Soares: três negros — Santão, Serafim Barbosa e Sebastião Ferraz, um branco— Villanova; é um resumo das três raças, com predominância da branca — Agostinho Aguiar.

Enquanto formam a roda de cururu e sorteiam a carreira, Tico Siqueira condescende em cantar modas de sua autoria. E depois que ele acaba, indago para começar conversa:

— Por que canta?

O poeta rústico tem uma frase bonita:

— Canto por inclinação. — Diz e olha depressa para o outro lado.

Já os cururueiros formaram uma espécie de grande coral, cantando todos juntos, em voz profunda assim:

Ai, ai, ai, orialai, orialai, 

Ui, lalalalalei, larilalai,

penosa e impressionante litania inicial, elementar como o coro da formação dos mundos. Essa parte é chamada baixão. O momento não é para perguntas, mas preciso fazer uma:

— Que é isso de sortear carreira? Que é carreira?

— Carreira é a alinhação — explica o que está mais próximo.

Fico na mesma e que remédio senão perguntar outra vez:

— O que é alinhação?

- Alinhação é a tonste. A linha.

E antes que seja feita nova pergunta, Chiarini vem em meu socorro:

— Carreira é a rima.

Fico sabendo que as carreiras são 123. Têm elas, por exemplo, a de São João, de rima em ão. A do sagrado, de rima em ado. Do dia, de rima em ia. De Santa Catarina em ina, e assim por diante.

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