Ruth Guimarães
Vós que falais da angelical infância, estais na verdade muito esquecidos. Sei de muita gente pia, desta minha cidade, que passou a meninice infernando o Dito Cego, com aquela inquietante e talvez inconsciente crueldade das crianças. Oooooo Dito Garapa, gritavam, encompridando os brados, da alcunha que o Dito abominava. E o Dito respondia. Ah! Coitada da nossa mãe!
Acabava de xingar e ia direto para a igreja de Santo Antônio, no morro. Lá, encostava-se a uma coluna e rezava. Sabia responder “eticuspiti tutu” ao dominum vobiscum do padre. - Rogai por nós, que recorremos a vós, às jaculatórias da Imaculada. E ora pro nobis e miserere nobis, na exata, durante a ladainha. Também cantava. Vinha o conato do fundo do seu desamparo, isolado, parece que a voz dele não se misturava à de ninguém. Alguém lhe deu um capotão para as noites de frio. Usava uma bengala de raiz de figueira, da qual os moleques mantinham uma prudente distância. O chapéu era como apagador de vela. Preto com as abas viradas para baixo,. Saía para a noite fria, que no alto da igreja sopravam sempre ventos ásperos.
Andar do cego era como de quem está subindo escadas, pernas abertas, meio fletidas, pés bem acima do chão a cada passo, cacetinho batendo no chão, saibros rolando ladeira, até que, do fundo da treva, da noite sua e da noite-noite, vinha o grito navalhante: Dito Garapa! Dito jamais deixava de responder.
Ai, nossa mãe!
Pela metade do caminho dava de encontro com a velha siá Maria, de mais de setenta. Cuidosa mais dos rompantes de mau gênio do filho que da cegueira (pois que Dito jamais errava um caminho), ela se enrolava no xalinho de franja e ia buscá-lo. Não tinha carinhos nem cuidados, nem solicitudes, dessas que mãe tem nos livros e nas novelas. Quando ela pegava no braço dele? Nunca! Até que resmungava: diacho, Dito! fosse pra casa mais cedo, que diacho que fica fazendo na rua! Andava atrás dele, de modo que a resmungação nem seria meio de o guiar. Ele sozinho na frente, ele sozinho atrás. Mas, nessa hora, a cara angustiada do Dito se abria e ele dava risada. Saiu ano e entrou ano e sempre isso. Não tinham ninguém. Moravam nas bandas do Pitéu, numa casinha do asilo São Vicente de Paulo.
Siá Maria punha o feijãozinho no fogo, comprado com dinheiro de esmolas, lava a roupinha, remendava, plantava couve, criava galinha caipira e patos.
Até que.
O sino dobrou bem cedinho. Morreu gente do asilo. Siá Maria, mãe do Dito.
Acho que aprendi a resposta a uma pergunta feita há mais de dois mil anos. A compaixão é virtude e é ensinável. Assim como a violência, que não é virtude, também é ensinável.
Pois alguns deixaram de gritar atrás do cego pelas noites trevosas, depois que compreenderam o comentário de uma velha avó:
- Pois não é? O pobre Dito Cego, com a morte da Siá Maria, ficou cego outra vez.
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