Ruth Guimarães
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foto de Botelho Netto |
Não sei por que inclinações de alma, ou por que assomos, o dia me trouxe uma alegria de convalescente. Alegria de visões inéditas e inesperadas, pura e simples como a água, e promanando talvez da mesma fonte imortal. Pois não é que a minha janela se escancarou para um mundo novo em folha? O recém-nascido sol se refletiu na linfa serena do primeiro dia, essa água do Tietê que vejo daqui, e tem o encanto conferido pela distância e pela claridade toda verde, não como os brotos quando é primavera, mas escura, plácida, oleosa, vagarenta, com relâmpagos de prata por toda a superfície, ora aqui ora ali, ao capricho de não sei que deus dispensador de beleza, em toques súbitos de luz. E veio o sol, quase humano, sorrateiro, deixando rastros de ouro, no seu passeio cotidiano pelo quintal. Lagartas de luz, na sua esteira, escorregaram, cintilando sobre o capim orvalhado. E sem mais nem menos me vi riquíssima de mil sóis, azuis, e alaranjados, que brilham na folha da taiova, guachada de verde-claro. Mas eu não tinha visto como estavam crescidas as bananeiras do quintal do seu Francisco, tontas, cambaleando ao galeio do vento. E como não reparara quão docinho e quente é o sol pela manhã, envolvendo como um belo manto que escorrega e acaricia. E o próprio chão, como é macio sob o passo! As areias escorregando, tão cheias de pedrinhas preciosas; a argila se amoldando maciamente ao jeito do pé; cada folha de capim deitando a cabecinha para pisarmos e logo levantando-se curiosa, com um som tênue como um suspiro. Chiu! Não perturbem! O pássaro continua o sussurro da folha, e o marulho da água acompanha a cantiga do pássaro. E o silêncio está no fundo, muito calmo, na quietude dessa manhã sem ontem.
E então me lembrei de que não havia visto os jornais, pois que a falta de jornais é brinde e descanso aos assinantes, na segunda-feira.
Quantos minutos levará para envelhecer e ruir amanhã, o mundo novinho em folha, só pássaro, só orvalho, só pétalas, só claridade?
Ah! Os jornais não chegam na segunda-feira...
Essas coisas não deveriam acontecer justamente a mim, que, afinal de contas, sou até mais caipira do que o Guimarães Rosa, modéstia à parte. Um daqueles moleques pé-no-chão, fralda-de-fora, calça-rasgada, apanhou a arapuca e a foi armar na cerca do campinho; arrumou o laço, dispôs o visgo no tronco do maricá espinhento, que já começou a florir nas baixadas e nos dá um arremedo passável de neve, com aqueles pomponzinhos brancos, macios, de pluma e penugem. Pois, em vez do cuió cantador e do canário cabecinha-de-fogo, quem havia de cair no laço, senão um passarinho, de casa marrom claro? Corruíra, parecia, das gargalhadas felizes, borbulhando no fundo da gorja, enquanto o bico, voltado para o céu, se abria. Ou cambaxirra, que também se chama, nome onomatopaico, que diz bem dos xxx, seu canto todo esfervilhante de rrr e chiados, quando goela a mais não poder ao quente sol deste verão maluco. Será assim, a carriça portuguesa, com este casaquinho cor-de-barro-seco, e este olhinho assustado, contas negras, inquietas, e coração palpitante sob os meus dedos? E terá assim, como o nome indica, o seu canto afogado em sol e em rrr e sss? Pois, como boa ave lusitana terá as sibilantes em lugar das nossas relaxadas palatais. Mas o moleque cortou tantas cogitações sem pé nem cabeça dizendo que não, que era uma brejeira à toa, Passarim sem valor. Brejeira? Tirando-lhe o susto dos olhinhos negros e a palpitação das asas frementes na ânsia de fugir, bem me parece brejeira. E muito simpática. Posso imaginá-la piscando gaiatamente. E posso vê-la na sua dança, muito leve sobre um galho seco, tão trêfega e feliz, e tão cascateante de risos. E como terá essa gente matuta conservado a significação da palavra brejeira, de maliciosa sutileza, tão alheia ao espírito sertanejo? Verdade que conhecemos certas palavras arcaicas, ainda em uso no sertão, com que nos maravilhamos sem motivo nenhum. Algures, por exemplo, muito bem empregada por qualquer caipira mambembe. E o verbo aplaudir, em uso muito antes do advento da TV e do rádio. E botica. E boticário. E descortesmente. E outras maravilhas assim. Enquanto lhe acariciava a cabecinha, pensava na história da Donzela e da Moura-Torta, “o moço foi passando a mão pelo pescocinho de plumagem fora, depois pela cabeça. Parecia que a pombinha estava gostando. Fechava os olhinhos de conta, demorava com eles fechados, e o arrulho se fazia gentil e suave: rumrrummrrrrummmmmm. E, então, de repente, os dedos do moço tocaram em uma coisa dura. Que é isso? – separou as penas – uma cabecinha de alfinete! Ela fez você sofrer, pombinha? Quem foi o malvado que fez isso? Quem foi? Arrancou o alfinete. Uma gotinha de sangue manchou a alvura da cabecinha da ave. Parecia que ela começava a crescer. As plumas se douravam, se afinavam, se alongavam. Arredondava-se o colo. Estendia-se o corpo. E num instante estava junto do moço aquela bonita mulher que...” Brejeira? – perguntei. Por que, brejeira? E o moleque teve esta resposta sublime: Porque é Passarim do brejo, uai!
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foto de Botelho Netto |
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