Ruth Guimarães
Este ano tirei uma vingança bárbara da minha mangueira. Eu sei em que mês floresceu. Foi em julho, floração de pouco tempo. As pétalas de ferrugem caíram, formando fulvo tapete no chão. Como se o sol houvesse derramado, respingando para todas as bandas. As flores vêm precocemente, já iniciam o bailado com o vento, em agosto de rajadas fortes. E vi depois quando se enfolhou. Os frutos precisam de sombra espessa, sempre, e ela era toda fronde, ramagem aberta, acolhedora, toda pássaros e orquídeas, e toda música, num grande sussurro, pontilhado de gorjeios. A chuva escorreu-lhe pelo tronco, acinzentou em mofo, esverdinhou em musgo, se amolentou fofamente na casca muito velha, enegreceu nas reentrâncias e ranhuras. Negra e verde e ruiva. Linda! O luar a envolveu, nas noites, em gelo e silêncio. O vento a embalou com cuidado, à ruiva namorada. Mesmo assim o chão se transformou em pura alcatifa de ouro, variando os desenhos a cada momento. Luís Florêncio, guarda-freio, olhou pra cima e comentou: Este ano vai carregar. Pois sim, eu disse. Pois sim, depende do vento. O fruto vagaroso principiou a se arredondar nas pontas dos galhos. E mais não vi, que mais não quis ver. O que aconteceu em seguida foi na calada da noite, na doce primavera, no ardoroso estio, entre borboletas e abelhas. Aconteceu também à noite, de mornos luares. Aconteceu sempre, enquanto as mangas granavam, e cresciam, e o cheiro doce picante, ácido, terebintina e sol e mel, entontecia os sanhaços e bem-te-vis. E com quase seis meses de vagarenta gestação, apareceu, dourado e róseo, o fruto (e perfumado), e eu não estava lá para ver. E lá não fui, de maneira nenhuma, que estou de mal com essa velha mangueira que me acolheu nos braços muitas vezes, que me salvou de algumas surras (eu marinhava precipitadamente tronco acima, na devida ocasião), que aturou as declinações de latim, e as leis de física, que talvez ainda saiba um pouco de história e alinhar os jambos e espondeus, e armar sonetos, se é que aproveitou bem as leituras que ouviu. Continua hoje e sempre o seu ritmo, e nem murchou de tristeza, nada. Floresce e frutifica do mesmo jeito na minha ausência, a ingrata, a traidora. Até melhor. Até mais e mais cedo. Até a fruta é mais doce. Pois lá não irei. Que os frutos caiam no chão, ouro, mel, melado, doçura, gostosura, que saudade! Ela tem seus pássaros, suas abelhas, suas iraras de cintura fina, e as mamangavas zumbidoras, azuis, e as lavandiscas translúcidas, e o vento e o sol. Eu não faço falta nenhuma, deixa pra lá!
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