terça-feira, 30 de julho de 2013

João Cassiano, portador.

Ruth Guimarães

João Cassiano vendia frango caipira de porta em porta. Sessenta e tantos anos, vestia um cotidiano paletó que havia sido xadrez um dia. Cara de índio, bugre herança materna, bigodinho ralo e cabelo idem, dentes ruins. Andava curvado, menos pelo peso do jacá do que pelo peso da idade. Batia a pé duas vezes por semana desde o Quilombo até o centro de Cachoeira, rumo aos fregueses certos. Falava pouco, negociava o necessário. Ia vivendo.

Nessas idas e vindas encantou-se o solteirão por uma mocinha que vivia com a mãe numa casinha no caminho do Pé Preto. À falta de melhor símbolo de amor, frango mesmo servia. E ele passou a presentear, uma vez por semana, mãe e filha com o mais rotundo galináceo do jacá. Quase um ano de “namoro”, perto de 40 frangos entregues, João Cassiano levou a moça a um aniversário. Na festa ela dançou, sapecou com uns e com outros. Sob protesto do idoso namorado, que reclamou:

- Homem não põe a mão na cintura de mulher meu!

E acabou-se o namoro. E acabaram-se os frangos.

João Cassiano entra nesta história como Pilatos no credo. Ele e as duas mulheres são os chamados portadores, isto é, intérpretes do inconsciente coletivo. Eles pensam como toda gente pensa, agem como todos agem e portam as leis não escritas que comandam uma comunidade. Assim, ele é o correspondente a um homem machista da plebe, sem a consciência de quanto a sociedade mudou no que diz respeito ao relacionamento homem-mulher a fim de casamento. Casamento que também não é mais aquele.

Alguém perguntará então se o folclore é o conjunto das coisas antigas, que não mudam. E eu respondo: folclore não é tradição, mas o que sabemos de um povo, de um clã, por meio dos seus portadores, como esse João Cassiano, perfeitamente inconsciente do que transporta e do que conta de si mesmo e de uma sociedade da qual faz parte.

Quem pesquisa folclore precisa ter o máximo cuidado ao escolher as pessoas que vai contatar. Não é preciso ser idoso, nem ignorante. O menino que joga pião é um portador. Assim como o jovem que bate na madeira para espantar o azar. Ou toda essa gente que levanta com o pé direito porque levantar com o esquerdo, dizem, atrasa o dia. O folclore não pode ser criticado. E tampouco se interfere no processo folclórico. O folclore é manifestação viva, e portanto nasce, cresce e se transforma. Sozinho.



João Cassiano é puro. João é portador. E ele carrega valores que perduram. Bons ou maus, são valores que compõem a sociedade. O tempo e as mudanças impostas pelo tempo se encarregarão de fazer com que as alterações necessárias ocorram. João Cassiano, portanto, é a base do nosso tempo.

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