Ruth
Guimarães
- E o labrego?
- Que labrego?
- O que começou a
trabalhar esta semana?!...
Naquele dia, quando
um pedaço de ferro percutiu de encontro à enxada velha, amarrada na árvore, no
toque para o almoço, o prato do camarada já estava arrumado na mesa da cozinha.
Comida de rico, três misturas, e mais: farinha de mesa, uma banana. Um pão. Uma
caneca de café. Não eram gente sumítica.
O rapaz estivera
limpando o pasto e ainda sentia nos braços o ardume das navalhas da braquiária.
Comeu com fome e com gosto, comidinha temperada, benza-a Deus!
Afastou para um
canto do prato o cozido de abóbora madura, diz-que chamado quibebe. Era para
ter jogado fora, na base do disfarce, porque a mãe já dizia que na casa dos
outros carece comer de tudo; mas a cozinheira não saía dali. E o prato foi
recolhido com o montinho amarelo vivo do quibebe, avultando meio que malcriado
na louça branca.
Na hora do jantar,
ele se sentou no canto da mesa, agora o seu lugar, puxou o prato:
arroz-com-feijão, macarrão, picadinho, quibebe. A cozinheira dava uma olhadela
, de viés. Era dia de estranhar muita coisa e muita gente.
O moço se deitou no
catre, num quartinho dos fundos, sem comunicação com o resto da casa, onde
também guardavam as ferramentas. Colchão de capim, por baixo, colchão de palha
de milho desfiada, por cima, barulhento. Dormiu bem, assim mesmo, um sonão
fundo, sem sonhos, desses de que a gente emerge devagar. Só acordou com a
madrugada alta, cinza-azulando na puxada para a luz e mandando claridade pelas
frinchas da porta e da janelinha muito pequena, de tábuas emendadas.
Pombal.
Refrescou-se na
torneira do tanque de lavar roupa, tomou café de caneca, comeu pão dormido e
foi para o serviço.
Hoje eu vou comer
aquela abençoada abóbora. Assim como assim, não vai me envenenar. O pessoal é
bom, o serviço não é de matar e a comida é dada com fartura. A mãe não vai
gostar desses meus luxos de pobre...
Hora do almoço,
enxadinha batendo, veio o prato fundo: arroz-com-feijão, macarrão e quibebe.
Ah! Então era pirraça! Comeu. Deixou no canto, bem arrumado, o montinho de
cozido de abóbora.
Hora do jantar:
feijão-com-arroz e abóbora. Comeu feijão com farinha e arroz.
Da semana haviam
passado a segunda e a terça. Na quarta-feira, feijão com abóbora. A cozinheira
ria lá consigo, um riso de boca fechada, que se denunciava em algumas pregas no
canto dos lábios apertados. Nos olhos, uma luzinha maliciosa.
O labrego comeu
feijão com farinha, de cabeça baixa, resmungando. Olhava de esguelha para a
mulher, indignado. Mando-lhe uma pratada de abóbora no focinho!...
No jantar um prato
bem cheio de abóbora. Prato de camarada. Ele nem sentou. Foi saindo aos
tropeções, cego de raiva, perseguido pelo riso guinchado da cozinheira.
- Ué! Está sem
fome? Não tem como abóbora para tirar o apetite de certa gente.
- E o labrego?
- Que labrego?
- O da abóbora...
- Ah!...
Na quinta-feira,
mais de meia semana decorrida, ele chegou prevenido. Bem sabia do prato cheio
que o esperava.
Foi ao quintal,
lavou-se assobiou. Subiu para a cozinha, sentou-se. Puxou com calma o prato
feito, revirou a colher. Maria olhando.
- Como é, Maria?
Tudo em ordem?
- Escuitei seu
assobio. Viu passarinho verde?
- Mais ou menos.
Sou moço, sou bonito...
- Sai, azar!...
- Sou rico...
- Nunca vi rico
capinando de enxada, comendo e dormindo pelos cantos alheios!...
- ... de saúde.
Hoje estou com disposição de comer até capim. Tem uma pimentinha aí?
A cozinheira
empurrou para o lado dele o vidrão de conserva de pimenta malagueta. O moço
derramou uma colherada do fogo vivo no prato, juntou farinha, mexeu devagar,
amassou bem a abóbora, misturou.
- Você vai comer
isso aí, português?
- Por que não?
Como, se quiser. Não sou escravo nem pau mandado. Por mim, podem encher o meu
prato com angu, jiló, tripa frita, serralha do campo...
- ... e abóbora. –
completou a cozinheira malvada.
- É. E abóbora. É
assim que me apetece. Abóbora, farinha e pimenta.
Comeu tudo sem
mastigar. Quando acabou, passou pedaços de pão nos restos e comeu. Limpou bem.
Bebeu água. Pediu café.
O labrego aprendeu?
É o que parece.
De qualquer
maneira, a cozinheira era acolhedora. O fogo crepitava alegre no fogão de
lenha. Labaredas altas, azuis e amarelas, dançarinas. Maria não o atingia com
suas caçoadas. Nessa noite, dormiu magnificamente. Abóbora nunca fez mal à
digestão de ninguém. No outro dia... Ah! No outro dia!...
O labrego chegou
assobiando, lavou as mãos e o rosto, subiu a escadinha apressado, quase
pulando.
- Maria! A bóia!
Capriche!
O prato estava
feito na ponta da mesa.
- Tenho o sábado,
meio dia, para descanso, o domingo inteiro...
- Comprar alguma
coisa na feira?
- Não. Só andar.
Olhar as lojas. Ouvir as novidades.
Sentou-se. Prato
cheio, calculado, cheiroso, como no primeiro dia. Então as coisas tinham afinal
se acertado?
- Maria, sabe que
você não é feia?
- Sai pra lá, seu!
Mais amor, menos confiança!
(Corruíra
grugulejava no quintal)
- Estou comendo o
ganhado. Não devo nada a ninguém. Isto minha mãe me ensinou.
- O mundo também
ensina. – disse ela, com um muxoxo.
- É.
- Você, por
exemplo, está aprendendo.
- É. – ele assentiu
novamente. Cê nem sabe como e quanto.
- Graças a Deus.
- Acho até que
melhorei de gênio. Estou largando mão de ser teimoso. O que é que a gente
ganha, testando? Acho que estou entendendo as pessoas... e... Qu’é que isso,
que danação é essa?
- Que foi? Olhe aí
nesse prato!
- Algum bicho?
- Que bicho? É o
prato...
- O mesmo de
sempre, acho eu.
- O mesmo de sempre
– repetiu o moço amargamente - rancoroso
– Pois viva eu, e vida a vida!
- Você não parece
estar alegre como estava.
- Alegre, Maria? Com
essa bofetada?
- Ah! Qu’é isso
portuga? Deixe pra lá? Tudo isso por causa dessa abobrinha aí?
- Não. Não é só por
isso não! Você não entende!...
O moço abriu
devagar a mão fechada, segurou a colher, calmo.
- Chega de
conversa! Eu vou é almoçar.
Comeu feijão com
arroz, o macarrão, o picadinho, a salada.
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