terça-feira, 30 de julho de 2013

A lição

Ruth Guimarães

- E o labrego?
- Que labrego?
- O que começou a trabalhar esta semana?!...
Naquele dia, quando um pedaço de ferro percutiu de encontro à enxada velha, amarrada na árvore, no toque para o almoço, o prato do camarada já estava arrumado na mesa da cozinha. Comida de rico, três misturas, e mais: farinha de mesa, uma banana. Um pão. Uma caneca de café. Não eram gente sumítica.
O rapaz estivera limpando o pasto e ainda sentia nos braços o ardume das navalhas da braquiária. Comeu com fome e com gosto, comidinha temperada, benza-a Deus!
Afastou para um canto do prato o cozido de abóbora madura, diz-que chamado quibebe. Era para ter jogado fora, na base do disfarce, porque a mãe já dizia que na casa dos outros carece comer de tudo; mas a cozinheira não saía dali. E o prato foi recolhido com o montinho amarelo vivo do quibebe, avultando meio que malcriado na louça branca.
Na hora do jantar, ele se sentou no canto da mesa, agora o seu lugar, puxou o prato: arroz-com-feijão, macarrão, picadinho, quibebe. A cozinheira dava uma olhadela , de viés. Era dia de estranhar muita coisa e muita gente.
O moço se deitou no catre, num quartinho dos fundos, sem comunicação com o resto da casa, onde também guardavam as ferramentas. Colchão de capim, por baixo, colchão de palha de milho desfiada, por cima, barulhento. Dormiu bem, assim mesmo, um sonão fundo, sem sonhos, desses de que a gente emerge devagar. Só acordou com a madrugada alta, cinza-azulando na puxada para a luz e mandando claridade pelas frinchas da porta e da janelinha muito pequena, de tábuas emendadas.
Pombal.
Refrescou-se na torneira do tanque de lavar roupa, tomou café de caneca, comeu pão dormido e foi para o serviço.
Hoje eu vou comer aquela abençoada abóbora. Assim como assim, não vai me envenenar. O pessoal é bom, o serviço não é de matar e a comida é dada com fartura. A mãe não vai gostar desses meus luxos de pobre...
Hora do almoço, enxadinha batendo, veio o prato fundo: arroz-com-feijão, macarrão e quibebe. Ah! Então era pirraça! Comeu. Deixou no canto, bem arrumado, o montinho de cozido de abóbora.
Hora do jantar: feijão-com-arroz e abóbora. Comeu feijão com farinha e arroz.
Da semana haviam passado a segunda e a terça. Na quarta-feira, feijão com abóbora. A cozinheira ria lá consigo, um riso de boca fechada, que se denunciava em algumas pregas no canto dos lábios apertados. Nos olhos, uma luzinha maliciosa.
O labrego comeu feijão com farinha, de cabeça baixa, resmungando. Olhava de esguelha para a mulher, indignado. Mando-lhe uma pratada de abóbora no focinho!...
No jantar um prato bem cheio de abóbora. Prato de camarada. Ele nem sentou. Foi saindo aos tropeções, cego de raiva, perseguido pelo riso guinchado da cozinheira.
- Ué! Está sem fome? Não tem como abóbora para tirar o apetite de certa gente.
- E o labrego?
- Que labrego?
- O da abóbora...
- Ah!...
Na quinta-feira, mais de meia semana decorrida, ele chegou prevenido. Bem sabia do prato cheio que o esperava.
Foi ao quintal, lavou-se assobiou. Subiu para a cozinha, sentou-se. Puxou com calma o prato feito, revirou a colher. Maria olhando.
- Como é, Maria? Tudo em ordem?
- Escuitei seu assobio. Viu passarinho verde?
- Mais ou menos. Sou moço, sou bonito...
- Sai, azar!...
- Sou rico...
- Nunca vi rico capinando de enxada, comendo e dormindo pelos cantos alheios!...
- ... de saúde. Hoje estou com disposição de comer até capim. Tem uma pimentinha aí?
A cozinheira empurrou para o lado dele o vidrão de conserva de pimenta malagueta. O moço derramou uma colherada do fogo vivo no prato, juntou farinha, mexeu devagar, amassou bem a abóbora, misturou.
- Você vai comer isso aí, português?
- Por que não? Como, se quiser. Não sou escravo nem pau mandado. Por mim, podem encher o meu prato com angu, jiló, tripa frita, serralha do campo...
- ... e abóbora. – completou a cozinheira malvada.
- É. E abóbora. É assim que me apetece. Abóbora, farinha e pimenta.
Comeu tudo sem mastigar. Quando acabou, passou pedaços de pão nos restos e comeu. Limpou bem. Bebeu água. Pediu café.
O labrego aprendeu?
É o que parece.
De qualquer maneira, a cozinheira era acolhedora. O fogo crepitava alegre no fogão de lenha. Labaredas altas, azuis e amarelas, dançarinas. Maria não o atingia com suas caçoadas. Nessa noite, dormiu magnificamente. Abóbora nunca fez mal à digestão de ninguém. No outro dia... Ah! No outro dia!...
O labrego chegou assobiando, lavou as mãos e o rosto, subiu a escadinha apressado, quase pulando.
- Maria! A bóia! Capriche!
O prato estava feito na ponta da mesa.
- Tenho o sábado, meio dia, para descanso, o domingo inteiro...
- Comprar alguma coisa na feira?
- Não. Só andar. Olhar as lojas. Ouvir as novidades.
Sentou-se. Prato cheio, calculado, cheiroso, como no primeiro dia. Então as coisas tinham afinal se acertado?
- Maria, sabe que você não é feia?
- Sai pra lá, seu! Mais amor, menos confiança!
(Corruíra grugulejava no quintal)
- Estou comendo o ganhado. Não devo nada a ninguém. Isto minha mãe me ensinou.
- O mundo também ensina. – disse ela, com um muxoxo.
- É.
- Você, por exemplo, está aprendendo.
- É. – ele assentiu novamente. Cê nem sabe como e quanto.
- Graças a Deus.
- Acho até que melhorei de gênio. Estou largando mão de ser teimoso. O que é que a gente ganha, testando? Acho que estou entendendo as pessoas... e... Qu’é que isso, que danação é essa?
- Que foi? Olhe aí nesse prato!
- Algum bicho?
- Que bicho? É o prato...
- O mesmo de sempre, acho eu.
- O mesmo de sempre – repetiu o moço amargamente  - rancoroso – Pois viva eu, e vida a vida!
- Você não parece estar alegre como estava.
- Alegre, Maria? Com essa bofetada?
- Ah! Qu’é isso portuga? Deixe pra lá? Tudo isso por causa dessa abobrinha aí?
- Não. Não é só por isso não! Você não entende!...
O moço abriu devagar a mão fechada, segurou a colher, calmo.
- Chega de conversa! Eu vou é almoçar.

Comeu feijão com arroz, o macarrão, o picadinho, a salada.

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