quarta-feira, 31 de julho de 2013

Bicho-Homem

Ruth Guimarães

Um Touro-Brabeza, desses que nunca viram gente, nascido nos campos da Bocaina, numas furnas, um dia resolveu conhecer a criatura de que tanto os mais velhos falavam: o Bicho-Homem. 

- Vamos ver quem pode mais - disse ele, trotando em direção da cidade. 

Desceu serra, subiu morro, e tornou a descer, até dar embaixo na planície. 

- Que é aquilo? - ele perguntou aos passarinhos, seus velhos conhecidos desde os tempos de boieco, na serra. Grandes amigos, eles serviam até para catar bichinhos que posavam no lombo robusto. E explicou: - Aquilo lá, cheio de buracos, feito uma caixa grande. 

- Aquilo, seu Brabeza, é a morada do Bicho-Homem. 

- Se é para morar - disse o Touro, com pouco caso - joão-de-barro constrói casa melhor. 

- Adonde que o senhor vai? ainda que mal pergunte - indagou um Anum. 

- Justamente vou conhecer o tal Bicho-Homem tão falado. 

- Eu não aconselho. 

- Ah! Eu vou! Quero ver se ele é mais corajoso do que eu. 

Anum ficou sacudindo a cabeça, como quem está com pena, e lá foi o Brabeza pra diante. 

Quase na entrada da cidade, ele viu uma velha, bem velhinha, corcovada, os cabelos branquinhos, que andava arrastando os chinelos e tinha uns olhos tão doces, tão tristes, tão desconsolados. 

Brabeza veio bufando e assoprando, a velhinha tropeçou e se encostou no barranco, sem poder dar nem mais um passo. 

- Você é o Bicho-Homem?! - berrou ele, olhando feio. 

A velhinha se desencostou do barranco, caçou o chinelo que tinha escapado dos dedos, com o pé ainda trêmulo. Conseguiu sorrir e respondeu: 

- Não, meu filho. Eu sou só a mãe do Bicho-Homem. 

- Ah! Pode ir, dona Mãe, não quero nada com a senhora, não.

Mais adiante, viu o Menino. Ia aos pulinhos, com um estilingue na mão, atirando pedrinhas nas fruteiras e nos passarinhos, não acertando nenhum. 

Brabeza investiu. O Menino passarinhou ingazeiro acima, e de lá, gritou para o touro raivoso:

- Que é isso, meu? Está maluco?

O Touro-Brabeza berrou de cabeça baixa:

- Você é o Bicho-Homem?

- Não! Que ideia! Você não está vendo que eu sou um Menino? Eu ainda vou ser o Bicho-Homem.

O Touro-Brabeza não entendeu bem a colocação, mas deu um bufo e foi andando. Quase às portas da cidade encontrou o Velho. 

- "Este aqui me parece o Bicho-Homem" - resmungou para si mesmo. 

Cresceu para o Velho, que, com o susto, pranchou no chão e ficou pererecando para levantar. 

- Você é o Bicho-Homem?

- Quem me dera! - disse o Velho gaguejando de medo. - Eu já fui o Bicho-Homem. 

O Touro já estava desanimado, quando encontrou o Caçador, todo paramentado para a caça, incluindo uma espingarda carregada. 

- Você é o Bicho-Homem - o Touro mugiu. 

- Sou sim, eu sou o Bicho-Homem! Quer alguma coisa comigo?

- Vim ver se você é tão valente como dizem...

- Pois eu vou mostrar a minha valentia. 

Engatilhou a arma e deu um tiro nas ventas do Brabeza. 

O Touro urrou, escarvou a terra com os pés, e desandou o caminho, na maior carreira da sua vida. Subiu morro, desceu, subiu a serra e foi parar entre os companheiros, ainda aos bufos e aos berros. A manada toda o rodeou, curiosa. 

Ele, todo espavorido, nada dizia. Foi só alguns dias mais tarde, quando já não sentia a dor da queimadura de pólvora na cara, que conversou a respeito da viagem tão mal arrematada. 

- E o Bicho-Homem, você o encontrou? Ele é bravo mesmo?

- Ah! O Bicho-Homem! Nem me falem dele! Só com um espirro que ele deu, olhem só como ficou o meu focinho!

Nenhum comentário:

Postar um comentário