Ruth Guimarães
Todas as vezes que subo a serra, e eu a subo regularmente, duas vezes em cada dia, todos os dias que Deus dá, recebo o mesmo impacto: aquela impressão de beleza da mata serrana que, de repente, arrebentou em flores. Lá no alto, perto do céu, estão as quaresmeiras, efemeramente muito roxas e muito brancas, cheias de laçarotes de cetim, molhados de luz sobre as franças. O mato abriu clareiras sem abrir espaço, com o velho truque de se resolver em luz. Meu amor por essa mata iluminada, toda rebrilhante de orvalho, onde o sol se estilhaça em milhares de joias, mal os róseos dedos da aurora acendem a lâmpada do dia, se decide numa ternura dolorosa.
Esse é um amor inquieto, como todos os grandes amores.
Ao olhar para as quaresmeiras, compreendo, como jamais compreendi antes, o verdadeiro significado daquelas palavras do Cristo sobre os lírios do campo: que jamais nenhum rei se vestiu com tanta magnificência como cada um deles. E eis que descubro estar sofrendo de duas aflições: a de meu coração não suportar tamanha beleza sem estalar, e a angústia de um gozo tamanho, mesclado de uma cupidez abominável, dona que sou das quaresmeiras da serra em toda a sua pompa e esplendor. Daí me vem o temor de perder o tesouro, que não pode estar oculto sob o alqueire, porque brilha e refulge muito mais que o ouro, muito mais que as pedrarias e as pérolas de Ofir.
Ah! não poder escondê-lo! Ah! temer mostrá-lo gloriosamente ao mundo! E resulta que sou rica dolorosamente, como é rico o pobre avarento, a quem o dinheiro martiriza.
Sempre leio em romances e contos europeus descrições de prados imensos, onde há abundância de florinhas silvestres. E falam em nomes lindos, como petúnias e prímulas. Apesar de cantarmos em altos brados que nossos campos têm mais flores isto não é verdade tão clamante assim. De raro em raro se vê o capim alto, desabrochando. O ipê, ouro vivo, é um aqui outro além. No tempo da suína, as árvores de sapatinhos vermelhos surgem a espaços muito intervalados. A água, às vezes, floresce em lilás, com os aguapés. Campos de flores? Alguém já viu isso, onde? E outro temor me vem, que a quaresmeira é de floração roxa, e essas árvores assim, à luz do sol, e rebrilhando de orvalho...
Não há no mundo criatura mais perigosa que o caipira, armado de machado e facão e de pouco respeito pelas árvores. Não haverá no mundo criatura mais perigosa para as minhas quaresmeiras, que o caipira armado de machado e facão, de pouco respeito pela floresta e da vontade de vender casca de ipê roxo, como remédio, para os raizeiros que vendem cascas, flores e raízes por aí.
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