Ruth Guimarães
“Cantos, ritmos e sons de instrumentos regionais e folclóricos. A música vai invadir salas, pátios e jardins das escolas do país. A disciplina defendida por um dos mais talentosos maestros brasileiros, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), volta a ser obrigatória na grade curricular dos ensinos fundamental e médio. Para especialistas, a aprovação da Lei nº 11.769 em agosto de 2008, significa uma formação mais humanística dos estudantes, na qual serão desenvolvidas habilidades motoras, de concentração e a capacidade de trabalhar em grupo, de ouvir e de respeitar o outro.”
Governos e conselhos de educação inauguraram uma prática que me parece sábia: o canto nas escolas. Ora, dirão, então não havia antes canto nas escolas? Havia aula de música, o que é outra coisa muito diferente. Havia aula de canto orfeônico, o que é também diferente. E havia o ouviram do Ipiranga ás margens plácidas. Ora, senhores, isto é cantar? Sei que vão argumentar com o carnaval e com os sambas e com as cabrochas que descem o morro vestidas de princesa, para virem rebolar no asfalto. Seus hinos são as marchas-rancho, os sambas que falam de Amélia, a mulher de verdade, afirmam que a felicidade é como a pluma que o vento vai levando devagar, e falam da lata d’água na cabeça. Ora, senhores, isto é chorar.
Um dia foi a procissão da ressurreição, uma festiva procissão na madrugada, quando o sol surgia bem por trás do morro do cemitério, que na minha cidade marca o nascente. Vinha indecisa ainda a gloriosa claridade. Havia muito de alvacento na neblina grisalha como uma velhinha que vai á igreja de mantilha de tule nos cabelos. Ave, ave, Maria! era o que se ouvia saudação angélica das mais belas do mundo, mas cantada como? Bem, queria que ouvissem. Teria alguma coisa de angélico, muito pouco de canto e nada de alegria.
Já devem ter ouvido em outras procissões: vestida de branco ela apareceu; para mãe do Redentor, a Senhora Aparecida, coração santo tu reinarás, sem entusiasmo nenhum, sem calor, sem convicção, umas vozes esparsas e desafinadas, uns esperando que outros cantem, as vozes não só desentoadas como fora de compasso, e já ouviram por certo, ai! cantar o Hino do Congresso Eucarístico e o Hino do Expedicionário Brasileiro. E isto é cantar?!
Certa vez ouvi cantar a plenos pulmões uma canção entusiástica, de um modo radioso e contagiante, eram uns alemães, para os lados de Santo Amaro.
Temos que enfrentar essa desagradável realidade: somos um povo que não canta. Se um grupo em festa canta, é a voz roufenha do sexto chope, ou do terceiro conhaque. Na ida e na vinda de um piquenique, há algazarra e gritaria, não cantigas. Os caminhões que vêm do Pacaembu para o largo do Amendoim e do Maracanã para a praça Paris, carregados de torcedores aos brados de mais um, trazem gente que berra, mas não canta. Há quanto tempo, há quanto! não ouço mais uma cantiga de roda! Na rua até as moças, de cabelos soltos e vestido de cassa, cantando Terezinha de Jesus, vai à porta e vê quem é... e onde vai senhora condessa, venho de França onde nasci... Caipira canta? Não vê! Desafio, só depois do caco cheio de muita cachaça. Começa com pinga, acaba com facada. Isto é cantar?
Nunca tivemos uma canção nacional, que todos soubessem e todos cantassem. Em redor da mesa, no Ano Bom e no Natal, nos quintais, quando as crianças brincam, nas ruas quando as moças vão de braço dado às esquinas espiar se o amor já vem, nos passeios a pé pelos arredores, nos campos e nas praias. Nos serões familiares de algum tempo principiou a pegar a “casinha pequenina”. Depois foi a casa branca da serra e depois o luar do sertão, mas foi por pouco tempo e logo tudo se acabou. Não somos gente de cantar. Decerto nos faria bem.
E é por isso que me parece sábia essa determinação do governo e dos conselhos de educação. Aula de Canto. Aula de Cantiga. Ou melhor do que isso: Aula de Cantoria. Ensinar a criançada a cantar. Pô-las em pé, em volta de um piano, onde a professora acompanha alegremente, e fazê-las cantar. Não importa o que, não importa como. Todas juntas. Em uníssono, lavando a alma na cantiga, soltando as vozes como canário da terra ou um gaturamo. Porque o dia está quente e claro, porque é cedo, porque estão vivos, porque são brasileiros, porque são pequenos, porque enxugaram as costas da mão, ao chorar depois do “pito”, porque quem canta seus males espanta. Cantar. Seja a prenda minha, a valsa do Adeus ou o moleque bamba.
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