segunda-feira, 3 de junho de 2013

Um dedo de prosa com Raquel

Ruth Guimarães

Raquel dá muito o que falar – e pensar. Minha amiga Raquel dizia que tentava falar com o coração nas mãos, mas verdade é que não “sei consolar nem dar conselhos”. Sempre achou que a vida põe uma responsabilidade enorme nos nossos ombros, mormente nos ombros dos moços. Questionava-se: por que terá você a obrigação de saber morrer, aos vinte e cinco anos, quando saber morrer é tarefa de velhos? Por isso suas revoltas, seus desesperos, pensar nas coisas que não aconteceu, no amor que não provou, decerto é essa mágoa maior, e o que lhe digo é que não o lamente tano. Afinal o amos, tal como você queria, não tem importância assim grande.

Tenha a certeza de uma coisa: viver não é uma experiência exterior, é principalmente uma experiência interior.

E eu, por minha vez, lhe pergunto: que compensação terão todos os outros em viverem por mais três, cinco ou vinte anos? Ninguém tem compensações, nem ninguém vive por compensações. Vive-se porque a vida não é uma promessa. Nós é que lhe atribuímos como compromissos todos os nossos desejos. E quando eles não são cumpridos, culpamos a vida, que afinal de contas não abrira a boca para prometer nada, e apenas nos mostrara a dura obrigação de tocar para diante. 

E se a obrigação se interrompe mais cedo, não será antes uma vantagem do que uma desvantagem?

O chão não se acaba – a final de contas só do chão precisa o homem para sobre ele andar enquanto vivo e no seu seio repousar depois de morto.

Só aos poucos compreendemos que a vida da gente é comprida demais em comparação com a curta vida de quase tudo que amamos, seja um cachorro, uma planta ou passarinho.

Não, não te apiades de quem morre. Porque a piedade supõe uma condição de superioridade e a gente só pode compadecer de quem sofre mais do que nós.

Choras com desespero o teu morto, parece-te que aquela coisa horrenda e única só lhe sucedeu a ele que é uma espécie de privilegiado da fatalidade. Ora, deixa em paz o morto. Quem sabe a sua parte foi mais branda do que será a tua. Ele afinal correu o seu caminho, venceu a sua etapa.

Horácio, diziam os mais velhos, não sabias viver; mas bem soubeste morrer. Tomara eu poder fazer o mesmo quando chegar a minha hora, e acabar como acabaste. Adeus, meu irmão.

O amor é coisa exigente e específica, e dez órfãos adotados não enchem no coração o lugar de um único filho morto. Antes se sente ressentimento contra os que ficaram, ao pensar que são tantos, tão excessivos, tão abandonados, soltos e sem dono como ratos de rua e assim mesmo vivem e crescem; enquanto aquele que era adorado e único teve que ser atirado à terra como se ninguém o quisesse mais.

Nasce o Homem nu e só depois é que se veste. Perde a nudez com a inocência; junto com a inocência perde a beleza e, como se sente feio e impuro, começa então a cobrir-se e a envergonhar-se. Isto não são invenções minhas, está na Bíblia, que é o Livro por excelência.

Pela mesma causa se embalsamam os mortos; e ainda por isso se inventaram os sarcófagos herméticos que retardam a decomposição; e se grudam como joias, dentro de chumbo, de madeiras balsâmicas, de veludo, de prata, aqueles transitórios detritos da vida. E são postos depois em mausoléus de mármore, ou de concreto impermeável, para que o finado se decomponha em seco, tal qual um rato morto numa gaveta abandonada. E cobrem aquilo com flores: verdade que isso das flores ainda é o mais justo, porque flores também são despojos, também estão mortas e se vão destruir e virar pó, seguindo o caminho de tudo que viveu.

Ai, não se doa tanto assim de ir embora, Aspásia. Afinal, embora iremos todos, mais gastos, mais velhos, mais corrompidos, mais cheios de feridas do que você. Parece que só nisso está a vantagem de viver mais. Refere-se tão amarga aos seus dias contados; e, entretanto, quem é que não tem os dias contados?

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