segunda-feira, 3 de junho de 2013

Uma carta de J.J. dos Santos

Ruth Guimarães

De Belo Horizonte, Minas Gerais. O amigo se chama prosaicamente J.J. dos Santos. Jovem amigo – sei que é jovem, pois somente os moços têm esse belo atrevimento de pedir contas a quem não pode dá-las, de se preocuparem com tais assuntos, de se comoverem e vibrarem com o que não é prático nem imediato. Meu jovem amigo, todos nós sentimos essa desagregação sutil, que vai crescendo como onda, em maré cheia. E coisa que não se vê, mas acabará por nos levar à perdição.

Nesta altura eu gostaria de recitar “Le vase brisé”, de Proudhomme e o amigo entenderia melhor o que quero dizer, pois as parábolas têm uma força e uma penetração que a prosa não tem. Como no célebre soneto, uma fenda se alarga e destrói as almas. É principalmente pela dissonância do cristal partido que se sabe, que se adivinha, com o temor no coração e a ansiedade nos gestos. Quem sabe o soneto poderá ser substituído por uma história? a mais ingênua e a mais linda, pois o homem primitivo é intensamente poético, na sua intuição e no seu desamparo. (Como as crianças e os loucos...). A história é esta:

Dizem que a mãe de São Pedro foi para o inferno. Foi porque era malvada e sovina. Tão sovina e tão malvada, que não se salvou. Quando o velho pescador soube que ela estava no inferno, chorou, chorou, e tanto pediu, tanto pediu, que o mestre, condoído da sua mágoa, disse: 

– Pedro! Procure alguma boa ação que ela tenha praticado. Talvez se possa salvá-la...

Pedro pegou o livro da vida e procurou. Procurou com cuidado. Procurou dias e dias, procurou, procurou. E, por fim, humílima, entre o negror daquela vida, luziu um raiozinho de bondade. Um só. Veio radiante falar ao Amigo: 

– Senhor! Encontrei! Um dia, quando uma formiguinha gemia, presa sob uma folha de cebola, minha mãe ergueu a folha e a deixou sair. 

– Bem, Pedro, – disse o Senhor, magnânimo – atire a folha de cebola ao inferno. Segure uma ponta. Por ela a alma perdida subirá ao céu.

Assim se fez. A mãe ia subindo, ia subindo. Em meio do caminho, lembrou-se de olhar para trás e viu, embaixo, muitas almas esperançosas, agarradas à folha e que iam também subindo. Porque era muito egoísta e achava que só ela deveria subir – o merecimento foi só seu – e também porque tinha medo que aquela frágil folha se arrebentasse, ia empurrando para baixo, com os pés, cada alma que chegava ao seu alcance. E então, ao peso de sua maldade, a folha partiu-se e ela foi precipitada, desta vez para sempre, às trevas inferiores. 

De maneira que aí temos, parabolicamente, uma esperança e uma advertência. Salvar-nos-emos se tivermos tido, em tempo, uma pequena ação terna, um raiozinho de luz, um pensamento bom. Salvar-nos-emos se salvarmos conosco as outras almas.

A razão de tanto descalabro, todos nós sabemos. Basta ter olhos de ver. Como pôr um paradeiro à descida para o abismo, isto não sei. Fugir? Como? Para onde? Uma vez que não há crença, nem o céu é viável. Aprazível lugar será o inferno se existir e para lá formos. Pelo menos é um fim e uma certeza. Admiro-o, amigo, na sua luta e na sua indignação. Atire-se contra os moinhos de vento, se lhe apraz, e não se preocupe com os risos. Todos sabem que quem constrói, cria, vive e se projeta para o alto bela como uma flama e inacessível como as estrelas, é a Loucura e não o Bom Senso. Quem me dera conservar para sempre a minha Loucura. Quem me dera!

Eu não sei onde está a salvação e, se soubesse, não carregaria comigo o peso de tamanho segredo. Às vezes desconfio que na Poesia, outras que no Orgulho, outras que na Bondade. Se o destino me conceder tempo, experimentarei alguns caminhos. Se quer mesmo que eu confesse, dir-lhe-ei que estou sim aparelhada para caminhos dessa espécie. Sou mais ou menos destituída de bom senso e de compaixão.

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