segunda-feira, 3 de junho de 2013

Roteiros do "Moçambique"

Ruth Guimarães

De que maneira São Benedito entra na dança. Há crendices e abusões no Vale do Paraíba. Muita fé também.

A força do sangue preto vinda nas veias dos escravos de Luanda e Moçambique ainda palpita, mais viva, nos descendentes da costa d’Àfrica.

Vem ainda da África este ritmo triste.


De inestimável valor para o folclorista é o roteiro, no tempo e no espaço, das festas de cunho popular, principalmente quando nessas festas ocorrem as danças folclóricas, já tão raras, na sua pureza primitiva.

O Vale do Paraíba começa em Guararema das distâncias, no Estado de São Paulo, e termina em Campos, no Estado do Rio. Para se conhecer o Moçambique, é bastante ter-se o calendário das festas dos padroeiros.

Em Jacareí, dança-se Moçambique todos os domingos e dias santos. Em Taubaté, na festa de Santa Cruz, e do Bom Jesus. Em Tremenbé, e, qualquer dia santo. Em roseira, todos os sábados e domingos, o que também acontece em Moreira César e em Eugenio de Melo, aldeias, simplesmente, onde a vida é intensamente primitiva. Em Aparecida do norte e Guaratinguetá, o Moçambique comparece em grande estilo na segunda-feira que sucede imediatamente ao domingo de Páscoa. Em Lorena, eles vêm no dia 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da Piedade. Em Cachoeira Paulista, no dia 13 de junho, festa do padroeiro Santo Antonio. Em Queluz, dia 24 de junho, festa do padroeiro São João.

Porém há certos detalhes inerentes a todos os bandos de moçambiqueiros! Primeiro, é uma dança somente para homens, e segundo, (isto talvez eu devesse ter dito em primeiro lugar) - São Benedito é o santo patrono deles, em qualquer tempo e em qualquer festa.

Nem era preciso um nome desses, para se saber que Moçambique é dança de preto. Basta ver num domingo qualquer, um “bataião” onde se misturam mestiços em todas as doses, sacudindo-se ao ritmo certo, marcado pelo tinir dos “paiás’’ e do brandir de pauzinhos roliços que se entrechocam no ar.

Puro baticum

O Moçambique não tem instrumentos de corda. Aqui não se vê a viola enfeitada de fitas, nem os tan- tans, nem o atabaque, mas apensa os tambus, de fundas, graves, sombrias vociferações. Os outros instrumentos que marcam ritmo são pauzinhos roliços, manejados por mãos destras, batendo uns contra os outros, e os sininhos, chamados “paiás”, amarrados nas pernas dos dançadores.

É uma dança que sugere claridade, que denota leveza, que reçuma graça. Leveza e graça ágeis, de animais jovens, ou de felinos em caça, embora nem sempre os moçambiqueiros sejam todos moços.

Eu os vi dançando, no domingo passado, diante da igreja de São Benedito, em Aparecida do Norte. (Diante da igreja, em que pese à severa ogeriza dos padres.) Tentarei descrevê-los, embora seja como descrever o vôo dos pássaros e das libélulas, um recuo de onda marulhado ou um bote de cobra coral. Tudo tão rápido e certo, inapreensível e indescritível, como se quisesse aprisionar raios de sol, o sasi no rodamoinho, a rápida crispação na lagoa, quando o vento passa.

Devoção e pobreza

Os moçambiqueiros estão pauperrimamente vestido. Usam calça e camisa brancas, muito alvas, muito esfregadas, e no peito se entrelaçam as fitas de São Benedito, azuis e amarelas. Na cabeça um casquetinho, os pés descalços. Amarrados nos tornozelos estão os paiás, sininhos muito sonoros, espécie de guizos, que são “mal comparados”, como os da burra-madrinha, das tropas que percorrem o Vale, na zona não servida por ferrovias e rodovia.

O passo é um só, em compasso ternário, meio pulado. A coreografia, esta sim, é muitíssimo variada. Alguns grupos dos moçambiqueiros sabem vinte ou trinta evoluções diferentes. O Moçambique é dança rude, primitiva, elementar, contudo é ballet. Conta uma história.

O seu sentido se perdeu, mas se adivinham partes dela, ainda, como fugazes expressões, num rosto de criança, que não sabe dizer o que sente, nem o que pensa (se pensar). 

Julgaríeis ver um bloco de carnaval, dessas escolas de samba bem treinadas; que executam maravilhas de ritmo, não fora a expressão dos moçambiqueiros, uma espécie de êxtase, petrificado. Num bloco de carnaval há em todas as feições um ar de festa, um entusiasmo, um delírio, algo de satânico e irreprimido. No Moçambique, não. Os rostos esculturas místicas, de pedra, de gelo, de aço, de granito, de bronze, escurecidos, maltratados, duros, gélidos, inumanos e sobreumanos.

ASSIM PINTOU O MOÇAMBIQUE

De dia não tem lua
De noite há luar
De dia não tem lua 
De noite há luar 
De Arembepe a Itagipe, da Ribeira a Jacuípe
Tudo é lindeza
Estrela de quinta grandeza
Filha de mãe sudanesa
Tudo é beleza 

Fazendo um som no atabaque, trazendo até pro batuque
Cantando um samba de Black
Assim pintou Moçambique
Nesse tique, nesse taque, nesse toque, nesse pique
Assim pintou Moçambique
(Moraes Moreira)

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