segunda-feira, 3 de junho de 2013

O povo das águas

Ruth Guimarães

O que se chama cobra, popularmente no Brasil é qualquer serpente, nome comum a todos os répteis da ordem dos ofídios. Talvez por ter o homem sofrido demasiadamente com esse réptil, o mito da cobra é extenso, variado, subdividido, constante, contraditório, aceito, folclorizado no país inteiro, plurinominado, lunar e aquático. 

O Norte e o Meio-Norte oferecem mitos d’água maiores e mais apavorantes. A Cobra-Grande, Mboy-Guaçu, serpente antropofágica, carnívora. Dentro dela veem-se, por transparência, os olhos de todas as vítimas que devora no decorrer da vida, olhos esses tornados vivos e fosforecentes. Ela se alimenta de olhos, principalmente na época das grandes enchentes temerosas, quando as criaturas terráqueas, sem orientação, são arrastadas pelas enxurradas. Esses olhos não são jamais digeridos. Apresentam, principalmente à noite, uma luminosidade singular. O mito pertence à cosmogonia tupi. Entrelaça-se com a Cobra-Morato, aproveitada na poesia brasiliana do gaúcho Raul Bopp. É igualmente Boiuna, Cobra-Preta, pertencente à lenda do aparecimento da noite. Relacionado às cobras aparece o Boitatá, Baitatá e Batatão, os dois últimos nomes colhidos pelo tieteense Cornélio Pires. O Rio Paraíba do Sul, no Vale do Paraíba, tem o Caboclo-D’Água, que aparece em forma de cobra e atrai as moças para o fundo da água – no Amazonas há figura de função semelhante, o boto. Também no Vale, ainda temos a Yara, Iara ou Uiara, rainha ou mãe das águas, perdição dos pescadores. Faz sincretismo com o mito negro Iemanjá e é hoje figura das mais respeitadas nas religiões espiritistas de terreiro. 

O povo d’água exerce indizível atração sobre o selvagem brasileiro, pelo que se vê de sua mitologia, e sobre o primitivo atual, pelo que se conhece de seu folclore. 

Eu já contei das antigas pescarias do Rio Paraíba?

Isso era antes, quando havia peixes. Quando até se caçavam peixes, como por exemplo o cascudo, um monstro antediluviano, preto, feio, bocudo, com ásperas escamas e que vivia grudado embaixo das pedras do rio. Dali só era retirado a ponta de facão, a cutucões. Depois de limpo e cozido, que especiaria malaxada! Macia, branca de neve. Mas não é de pescaria nem de caçada de peixes que eu queria falar, mas dos habitantes fantásticos do Rio Paraíba. Do Caboclo-D’Água primeiro, desse duende que assombra as corredeiras e as voltas desse rio, meu rio. Muita gente já o viu, e ele é responsável por muita correria, em noite escura pelas beiradas sombrias do rio, meu rio. O outro duende, diz-que mito indígena, não deve nada ao mito das sereias do Reno, e não sei por quais ínvios caminhos veio parar nas brenhas amazônicas, e acabou nesse pífio Paraíba do Sul. E a Uiara, que seduz com seu canto e o seu vestido verde, os caboclos piraquaras. 

Em certa pescaria-caçada, um certo João Serafim já conseguira virar de barriga pra cima um peixame, por via de timbó. Pois o João Serafim jogou a rede, ela pesou no arrasto, será muito peixe? que ele perguntou, cismado. Era noite muita, podia ser defunto, gente rodando nas águas... Era a sereia Uiara chamada. A coitadinha veio se batendo, o olho verde lumeando, a linda boca aberta na aflição, o cabelo verde emaranhado, foi suspirando, suspirando e se acabou. 

Acabou de morrer, sumiu. Ficou uma esteira de espuma no rastro da canoa, por cima das águas. 

O relógio da matriz varou o coração do tempo com doze pancadas, sem quebrar o encanto. Foi quando o rio dormiu. Não se ouviu mais nem uma bulha. A água era óleo grosso parado. 

É, esse povo das águas é mesmo encantado. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário