quinta-feira, 2 de maio de 2013

Yacy-taperê, diabo menor

Ruth Guimarães 

"Este nome (yacy-taperê) liga-se a uma lenda, que tem relação com o conto das amazonas. Dizem que, quando desceram 'umas mulheres' (ceta cunhã) ficaram nesse lugar irmã e irmão". E assim, nessa linguagem saborosa, vai João Barbosa Rodrigues, em O rio Iamundá, desfiando a belíssima lenda ameríndia. Conta como se apaixonou a irmã pelo irmão. E como o visitava cada noite em sua rede, misteriosamente, protegida pelas trevas. E como o irmão, para descobrir quem era aquela que o despertava para o amor, umedeceu-lhe as faces com urucum. E ela que habitava as margens do lago Iaci, espelhou-se em suas águas e viu que estava marcada para sempre. Manejando o arco, despediu flecha após flecha, até formar uma longa vara, e por ela subiu e transformou-se em lua. O irmão que habitava o alto da serra, indo vê-la e não a encontrando, de dor metamorfoseou-se em mutum. Ela agora vem mensalmente, sob a forma de lua, mirar-se nos espelhos dos lagos para ver se desapareceram as manchas. 

É muito interessante a concordância desta lenda com a dos esquimós. Contam eles que a lua, visitada cada noite por um jovem, lhe enegreceu o dorso para marcá-lo e, tendo reconhecido que seu irmão era o amante, fugiu, perseguida por ele. Foram ambos transportados às nuvens e ele tornou-se o sol (Seibillot, Le folklore). 

A Tapera da lua — recontada por Afonso Arinos nas Lendas e tradições brasileiras, refere-se a uma aldeia que ficava perto de uma lagoa tranqüila, nas fraldas da serra chamada do Taperê e hoje do Acunã. Uma guerra infeliz reduziu a tribo a dois sobreviventes, apenas irmã e irmão. O resto como na lenda recolhida por Barbosa Rodrigues. O mesmo em Melo Morais Filho. Em todas há a relação com as cunhãs-apuyaras — as amazonas. 

Percebe-se que Jaci, a lua, se confunde com Iaci, o lago. E há ainda a notar a significação de Jaci (de ja - vegetais; e cy - mãe). Taperê, a tapera, confunde-se com Taperê, a serra, hoje chamada do Acunã. Como elemento básico e determinante do mito, temos a necessidade de explicar as manchas e fases da lua. 

É provável que de uma única vara de flechas, subindo aos céus, idéia primitiva do saci, i.e., de Jaci, tenha surgido, por associação, o mito saci de uma perna só, embora os partidários da hipótese astral por assim dizer —vejam na forma um indício claro de que a lenda do saci procede da conformação da Ursa Maior. E é possível também que a forma — uma perna só — venha do hábito dos pássaros ficarem em repouso sobre uma perna. A cantiga do pássaro, associada à lenda, impôs a onomatopéia — jaci taperê. Ao que parece, com tais elementos é passível de sucesso a tentativa de situar em definitivo a lenda do saci, por um lado, entre os mitos florestais. 

Como na primeira contribuição do progresso, o invasor fez do jaci taperê, o saci-pererê-de-uma-perna-só, emprestando-lhe as características dos duendes originários da alma dos mortos e do culto do fogo, nas lendas européias. Aliás, não foi preciso modificação de seus atributos essenciais para isso. Evidentemente, na lenda ameríndia o saci tinha origem antropomórfica, estreitamente ligada à alma dos mortos. Foi um elemento incorporado à lenda da tapera da lua, numa tentativa de explicar o perambular de um pássaro e o seu canto melancólico, que parece um chamado. Aqui já não se trata do mutum, conforme a lenda colhida no rio Jamundá, mas de outra ave, considerada mensageira da alma dos mortos, segundo Metraux (La religion des tupinambas). É bastante impressivo esse elemento etiológico. Os mandarucus diziam mesmo que era sob a forma de matim taperera, nome registrado por Metraux, que a alma dos mortos vinha passear sobre a terra. O mesmo entre os chiriguanos. Os guaraiús explicavam o cuidado que tinham por esse pássaro, dizendo que ele vinha da terra dos ancestrais. O indígena, que tinha a palavra e o mito — Jaci —ouvindo o chamado de saci, relacionou-o à maravilhosa lenda da tapera da lua. 

O nosso caipira associou o canto a palavras conhecidas e chamou a ave — sem-fim. A mesma ave é chamada indiferentemente — saci ou sem-fim, pelos caipiras do vale do Paraíba, sendo saci, evidentemente, corrupção de Jaci. Taperê passou a pererê, sererê, tererê. Jaci e taperê deturpados deram: mati-taperê. Posteriormente: matinta pereira, nome pelo qual é conhecida uma ave da família dos cuculídeos: Tapera naevia-Lin. Goeldi dá-lhe o nome de Diplopterua Naevius, e Barbosa Rodrigues — de Cuculus, Cayanus, ou seja, o mesmo saci ou sem-fim. Varnhagem dá matintaperera. Metraux: matim taperera, variando apenas na separação do nome. Na baixa fluminense diz-se: saci saterê e saci tapereê. No Rio Grande do Sul — saci peré (Jacques Cezimbra, Assuntos do Rio Grande do Sul). Como diz Cassiano Ricardo em seu belo Martim Cererê, nova corrução dos vocábulos originais, não é difícil que à força de se aportuguesar, venha o jaci taperê a dar: Martins Pereira da Silva. E não é difícil mesmo.

Um comentário:

  1. Eu andava aborrecida demais, pois toda quarta-feira era minha pós-graduação "Rutheana". Logo cedo, abria o jornal e tentava aprender a bela arte de nossa encantada. Nas últimas semanas, não mais tinha este privilégio; agora neste espaço tão bem construído, novamente me abasteço.
    Sônia Gabriel

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