quinta-feira, 9 de maio de 2013

Quaresmeiras em flor

Ruth Guimarães 

Por falar em negócios imobiliários, parece que foi pelos imóveis e seus possuidores principalmente que houve terremoto nas finanças mundiais. Que saudade do tempo em que os palacetes se chamavam iglu ou cubata, e no Brasil não passavam de ranchinho de sapé que ficou famoso nas paradas musicais sertanejas, onde morava a cabocla Teresa. 

Mas as quaresmeiras estão em flor... 

Todas as vezes que eu subo a serra, e eu a subo regularmente duas vezes em cada dia, os dias que Deus dá, recebo o mesmo impacto: aquela impressão de beleza da mata serrana, que, de repente, arrebentou em flores. 

Lá no alto, perto do céu, estão as quaresmeiras, efemeramente muito roxas e muito brancas, cheias de laçarotes de cetim, molhados de luz sobre as tranças. O mato abriu clareiras, sem abrir espaço, com o velho truque de se resolver em luz. Meu amor por essa mata iluminada, toda rebrilhante de orvalho, onde o sol se estilhaça em milhares de jóias, mal os róseos dedos da aurora acendem a lâmpada do dia, se decide numa ternura dolorosa. Esse é um amor inquieto, como todos os grandes amores. Ao olhar para as quaresmeiras compreendo, como jamais compreendi antes, o verdadeiro significado daquelas palavras de Cristo sobre os lírios do campo: que jamais nenhum rei se vestiu com tanta magnificência como cada um deles. E eis que descubro estar sofrendo de duas aflições: a de meu coração não suportar tamanha beleza sem estalar, e a angústia de um gozo tamanho, mesclado de uma cupidez abominável, dona que sou das quaresmeiras da serra em toda a sua pompa e esplendor. Daí me vem o temor de perder um tesouro, que não pode estar oculto sob o alqueire, porque brilha e refulge muito mais que o ouro, muito mais que as pedrarias e as pérolas de Ofir. Ah! não poder escondê-lo! Ah! não poder mostrá-lo gloriosamente ao mundo! E resulta dessas contradições que sou rica dolorosamente, como é rico o pobre avarento, a quem o dinheiro martiriza. 

Sempre leio em romances e contos europeus descrições de prados extensos, onde há abundância de florinhas silvestres. E falam em nomes lindos, como petúnias e prímulas. Apesar de cantarmos em altos brados que nossos campos têm mais flores, isto não é verdade tão clamante assim. De raro em raro se vê o capim alto desabrochando. O ipê, de ouro vivo, é um aqui outro além. No tempo da suinã, as árvores de sapatinhos vermelhos surgem a espaços muito intervalados. A água, às vezes, floresce em lilás, como os aguapés. Campos de flores? Onde? E outro temor me vem, que a quaresmeira é de floração roxa, e essas árvores florescidas assim, à luz do sol, rebrilhando de orvalho... 

Não há no mundo criatura mais perigosa que o caipira, armado de facão e machado e de pouco respeito pela propriedade alheia. Não haverá no mundo criatura mais perigosa para as minhas quaresmeiras que o caipira armado de machado e facão, de pouco respeito pela floresta, e da vontade de vender casca de ipê roxo. 

E eu vejo essa exuberância, esses morros vestidos de verde, essas flores selvagens, minhas quaresmeiras. E esses pios e gorjeios me despertam para uma beleza que me comove. E me vêm a lembrança as cidades grandes, o cimento armado, os altos arranha-céus, e os carros todos em fila, mascarando as tristezas. Os imóveis e os terremotos das finanças mundiais. 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Perigo mesmo? É o caipira armado de machado e facão, de pouco respeito pela floresta, e da vontade de vender casca de ipê roxo.

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