Ruth Guimarães
Era uma vez um homem que veio de longe, apoiado a um bordão, como um peregrino, trazia sandálias de couro e roupas em farrapos. Andou dias e dias, noites e noites, semanas e meses a fio, buscando sabe Deus o quê.
Certa vez as sombras da noite o alcançaram em pleno descampado e ele não saberia dizer se estava longe ou perto de uma cidade, porque uma alta montanha em frente lhe fechava o horizonte. E então, cansado de andar, vendo uma árvore copada, no campo, resolveu nela passar a noite. Descalço as sandálias, subiu agilmente pelo tronco, acomodou-se entre os galhos e adormeceu como as aves.
Em torno tudo era silêncio. Pouco a pouco, os animais noturnos, silenciosos, saíram de suas tocas e iniciaram a caça pelos arredores.
Era tarde já, quando o homem acordou com um rumor de vozes humanas. Depois, ouviu um longo canto, e, erguendo a cabeça, que tinha apoiado á forquilha formada por dois galhos, viu ao longe pequeninas luzes que ondulavam com o vento, endireitavam-se, iam de um para outro lado, porém caminhavam, evidentemente, para o lado onde ele estava.
-“Que será? – pensou, com um arrepio na espinha.
Ao aproximarem-se, reparou que eram homens vestidos com longas camisolas brancas e que levavam velas acesas. Na frente caminhava um padre, com uma cruz nas mãos.
O homem empoleirado esfriou.
-“Será uma procissão das almas?” – pensava, batendo os dentes de medo. Decidiu permanecer imóvel, para que não percebessem que ele estava ali.
Qual não foi, porém o seu espanto e o seu susto, quando os homens pararam justamente sob a árvore onde ele estava, e um deles falou:
-Qual de nós vai subir á árvore para trazer o homem?
Viu que eles se entreolharam e que nenhum parecia disposto; no entanto, acabaria por se decidir.
E mal pôde falar, de tanto que tremia:
-Ninguém precisa subir. Eu desço.
Nem podia acreditar no que viu em seguida, tão esquisito lhe pareceu tudo aquilo. Assim que ouviram a voz os homens largaram as velas, o padre jogou a cruz para um lado, e saíram todos correndo, como se tivessem visto, naquele momento, Satanás em pessoa e, atrás dele, um milhão de demônios.
-Santo Deus! Gemeu o homem, benzendo-se.
Pulou da árvore e saiu correndo também, mas em direção oposta á dos outros.
Assim que o dia clareou, o peregrino voltou ressabiado, curioso para ver se descobria o que havia acontecido naquele malfadado lugar.
-Eu com medo deles e eles com medo de mim, essa é boa! - resmungou intrigado.
Foi direto á árvore e correu-lhe um frio pela espinha. Lá estava balouçando no ar, um homem enforcado.
Então, compreendeu tudo. Os que iam retirar o criminoso enforcado, para enterrá-lo em algum cemitério, pensaram que fora o morto quem respondera que ia descer.
Mais tarde, quando o peregrino voltou á cidade, havia lá uma grande agitação. Faziam-se grupinhos em todas as esquinas, nas praças, diante da casa do padre.
Ele parou por ali, para ouvir as conversas. Diziam que um enforcado respondia ao que lhe perguntavam.
-Vai-se ver é alguém que morreu inocente – opinavam.
-É capaz.
-Que aconteceu? – perguntou o peregrino, acercando-se.
-Pois foi um criminoso enforcado, fora da cidade, num angico que há no meio do campo, e ontem á noite Seu Padre e os homens das irmandades religiosas foram buscá-lo, para fazerem o enterro dele, que é falta de caridade deixar um corpo pendurado para os urubus comerem. Pois não é que na hora de irem buscar o corpo, quando confabulavam para ver quem ia subir, o defunto falou lá em cima, que não precisava ninguém subir não, que ele descia!
O peregrino nada disse.
Em suas andanças pelo mundo havia aprendido que às vezes é de boa política ocultar a verdade.
Atravessou a cidade em silêncio, em silêncio se foi, e nunca souberam os habitantes do lugar o que havia realmente acontecido.
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