Ruth Guimarães
O Invejoso, certa vez em que passava pelo Éden, fechado para sempre no que lhe dizia respeito, parou:
- Calor, hein?! – comentou para o primeiro anjo que lhe passou ao alcance da voz.
- É verdade, vamos mandar uma chuvinha para refrescar.
- Não carece!
- É hora de contentar as plantas, coitadinhas, e está uma poeira de lascar.
- Ainda que mal pergunte – disse de repente o Curioso, fixando a vista e dirigindo-se ao Senhor, que aperfeiçoava uma espécie de boneco de duas pernas, feito de argila branca – que é isso aí?
- Um senhor para os seres e as coisas. Já é tempo de lhes dar governo e ordem.
- Um ser para governar outros seres?
O senhor ignorou o despeito contido na voz do Outro, e concordou:
- Tu o dizes.
- Vai ser assim, com esse corpo liso?
- Sim.
- Como se protegerá do frio?
- Ele se arrumará.
- Hum! – fungou o Malévolo, meio descrente – Aqui estão os pés. Dos lados o que lhe puseste?
- As mãos. Com elas trabalhará.
- Não deixa de ser uma criatura muito esquisita. Andará com dois pés, assim comprido como é? Não terá equilíbrio.
- Aprenderá. Dou-lhe a vida com a capacidade de aprender, de pensar, de querer.
- Muita coisa para uma criatura só. Será quase como nós. Lembras-te do que aconteceu comigo?
- Lembro-me – disse o Senhor, pensativo. Mas confio na minha criatura.
Acabou de modelar o barro. Fez o corte dos lábios, arrumou o sorriso, abriu-lhe os olhos na parte de cima do rosto, os dois de frente, como o dos gatos, anelou-lhe a cabeleira, o nariz era reto e delicado. Nele soprou-lhe a vida, e da argila surgiu o Homem, ainda puro, e ainda sem nenhum pensamento. Os olhos se abriram maravilhado e à boca aflorava, constante, o riso.
- Importa-se que eu também faça um? – indagou o Maligno.
- Faze. Sempre te deixei livre de realizares quanto queiras.
O Insinuante tomou do barro, moldou-o quase como o outro boneco, fez-lhe os lábios mais finos, a testa mais estreita.
- O teu calunga trabalhará com duas mãos? O meu terá o dobro. Andará ereto ou de quatro, como lhe apeteça. Aumento-lhe o equilíbrio, colocando-lhe uma cauda. Que há com a tua criatura? Que lhe aconteceu?
- Chora. – disse o Senhor, olhando na direção do Homem, que se afastara.
- Por quê?
- Porque sofre.
- Ensinaste-lhe o pranto e o sofrimento?
- Como vês.
- Para que? O meu não saberá chorar. Poderá rir. E até mesmo gargalhar. Também não lhe darei pensamento.
- Que lhe darás?
- Exuberância. Alegria. Agora cubro-o de pelos. Não sentirá frio. Bastante pelo sedoso, no corpo todo. Vigor. Agilidade. Bom apetite. Despreocupação. Vai,obra minha, e vive tua vida!
O macaco saiu das mãos do seu criador e subiu para as árvores, onde ficou dando cabriolas e fazendo gatimonhas.
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