segunda-feira, 27 de maio de 2013

Monte Serrat, Brasil

Ruth Guimarães

O monte Serrat, em Santos, é um dos mais lindos lugares do mundo para peregrinação. Primeiro porque se sobe num bonde pequeno, tal qual os bondes de brinquedos. Ele parte de uma estação toda redonda, bonita, trabalhada, como um biombo japonês pintado num leque de seda. E também se pode subir por uma escadaria que coleia pelo meio do mato, entre bambus e hera, com umas paradas deliciosas pelo caminho, alguns bancos, à sombra de grandes árvores, e passos de via sacra executados em relevo na pedra.

Será que ainda existem as casinhas de taboa, exóticas, estações do peregrino sedento? Eram barzinhos que vendiam apenas caldo de cana e tinham um balcão tosco e algumas cadeiras sob um telheiro. Bem no meio do caminho um deles ostentava o expressivo nome de “Bar da Meia Viagem”. Lembro-me ter achado que caldo de cana não ajudava muito na subida. Limonada seria melhor. Outros achariam que um gole de caninha... Bem, uma vez que era assim, estava direito. 

Em segundo lugar, o monte é o mais lindo lugar do mundo para peregrinação porque - vencida a aspereza da jornada - do alto, se descortina a cidade; parte em estilo velho, colonial, com seu casario feito em quadrinhos, como casinhas de presépio, parte em arquitetura com franjas brancas de sonho; os navios no cais, esperando indefinidamente como num velho romance em que a moça suspira pelo pirata, e com aqueles tons esmaecidos de quadros antigos, e moderna; divisam-se as praias, com aqueles sons que passam. E divisa-se, finalmente, ao longe, atingindo o horizonte e nele se perdendo, o mar, o mar profundo, o indomado, o verde, o largo, o imenso mar.

A igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat não tem lendas nem histórias de prodígios e nem é muito famosa. Ali está nua e pequenina, nua e sozinha, batida por todos os ventos.

Aos domingos o movimento de subida e descida é incessante. Sobem uma porção de jovens mães carregando uns comoventes embrulhos de seda e lã, azuis e cor de rosa. Há os que sobem penosamente, velhos, arrastando promessas. E outros que levam velas votivas acesas, com chama vermelha e quente como sua crença. E os que sobem por desfastio. E os que assistem a missa do alto por devoção. E os que se ajoelham nos quadros da paixão que ponteiam a jornada. E os namorados que se demoram no verde acolhedor das franças do caminho. E os que vão ver do alto do monte o soberbo espetáculo que é Santos, total, completo, vista de golpe, desnuda – vestida às vezes só de neblina. Sem esconderijos, sem locas, sem casinhas, sem nada que possa ficar escondido se a examinarmos desse ângulo.

Ela atravessa os séculos, anônima, estendendo no alto do monte como asas fatigadas, solitária e calada, os beirais coloniais e pouco ortodoxos de seus telheiros. Ali fizeram ninhos as andorinhas. E a ausência de seu nome dos textos e dos alfarrábios, dada a sua evidente ancianidade, é o bastante para lhe dar um relevo esquisito, um sabor romântico de coisa ignorada ou esquecida.

Não é possível ali permanecer sem a olhar com ternura. Talvez porque ali estejamos com efeito perto do céu, num lugar onde vai apenas gente simples, a gente que crê e a gente que espera. Onde vai comovidamente a gente que implora. Mas também porque o coração se dilata à vista da imensidade; lá está alargando as distâncias e rugindo o mar. E também porque dentro de nós o coração confuso está pleno de uma religiosidade inata, tanto tempo sem aplicação, e de um desejo de crer e confiar. E mais: de um desejo de rezar, não se sabe nem a quem, nem porquê, transpondo por um instante as linhas tangíveis da existência, vivendo por um minuto um Tabor de que não se suspeitava, vivendo por um minuto inteiro de sessenta segundos ou de sessenta séculos a libertação da angústia humana.

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