segunda-feira, 27 de maio de 2013

Memento homo

Ruth Guimarães

Eu vi o carnaval, sim. Andaram dizendo que o carnaval paulista iria ser de rua, como em Salvador. Pode ser. Depois que soube de braços amputados crescendo vivos de novo, de coração de moça batendo na arca do peito de um velho, de mulher de sessenta virando garotinha de vinte, não duvido de mais nada. Pode ser. Mas será preciso uma boa reviravolta para que o paulistano macambúzio – que já deu bandeirante enfarruscado, preador de bugre e construtores de cidades, esse povo esbaforido, sacrificado – vá para as ruas de minissaia, cabeleira, de príncipe, de índio pular de dia e de noite, como se pula na Bahia. 

O paulistano é homem de planalto, emburrado, o soteropolitano o praiano, gozador. Ainda se se tratasse do santista, vá lá, que o nosso caiçara tem a maneira de ser dos que nasceram diante do largo mar, aberto, convite à aventura e à alegria. Eu vi, sim, o desfile das escolas de samba, o Vai-Vai, o Nenê da Vila Matilde, os passistas do Parque Peruche, tudo muito bonito, muito autêntico e observei uma coisa.

Mas antes vou contar outra.

Há muitos vinte e cinco anos (por aí, por aí), vênetos e napolitanos habitavam a Santa Cecília, eram todos pedreiros e pintores de parede, ao calor de paixões rápidas e fervuras passageiras, sangue aquecido com o bom vinho, matavam-se às vezes uns aos outros. Outras vezes a coisa se resolvia com esbórnias memoráveis, vivas ao Palestra Itália, partidas de padrone & sotto. Os calabreses habitavam o Brás. Punham cadeiras nas calçadas à tarde, para ver o movimento, assistiam à noite os espetáculos de Nino Nelo e do Tito Schipa. Também torciam para o Palestra e trocavam vassouradas e socos nos cortiços da Caetano Pinto. No carnaval tomavam parte nas batalhas de confete da avenida Rangel Pestana e faziam o corso em berros formidáveis, em pé nas baratinhas de capota arreada, exibindo peito e braços cabeludos, como de macacos, e olhos negros de turco, luzentes de excitação. Nas quatro noites de folia iam todos para a rua. As famílias participavam. Mas o paulistano, neto de bandeirantes, assistia.

Agora, a observação de hoje, do carnaval de hoje, da animação de hoje, tirante a artificial animação emprestada pelos berros de TV e pelos dinheiros públicos. Um outro elemento, como antes o italiano, faz sozinho o carnaval paulista: o negro. Ele é que dança na rua , com um ar hierático ou místico, sei lá, vivendo o que parece um êxtase, magro, olhos no fundo, sustentado por uma impressionante energia nervosa, sacolejando ao ritmo marcado por tamborins, pelos pandeiros, pelas cuícas, pelas frigideiras. Quem conhece o jongo, o moçambique, as congadas, onde se gritam autos absurdos com entonação de reza, estará familiarizado com esse ar atuado do negro que dança. O negro paulistano veio de porões apinhados, de barras-fundas, de todo o baixo São Paulo pobre do muito aguentar.

Bem que o carnaval sempre me pareceu uma festa profundamente triste.

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