Ruth Guimarães
Eu
disse em uma de minhas crônicas: “parece que é uma arte perdida, a arte de viver.”
Acredito também que esteja perdida a arte de declamar...
Pensei nisso ao me lembrar de um certo
dia, quando quiseram os fados que me
fosse dado funcionar como juiz num concurso de declamação, e a primeira
surpresa do dia foi verificar como os declamadores frequentavam os modernos. A
segunda não foi propriamente surpresa, pois que Judas Isgorogota sempre foi
muito amado nestas províncias paulistas. E, pois, Judas foi o poeta mais
declamado, batendo por um bom corpo a Guilherme de Almeida, que em matéria de
popularidade esteve em maré alta por muito tempo.
Para
quem nunca ouviu falar de Judas neste nosso tempo sem poesias, transcrevo aqui
um trechinho de “Língua Portuguesa”:
Ah! quem te visse, após, em pleno dia,
Desnuda, ao sol, não te conheceria...
Qual irmã gêmea de Paraguassu,
Desafiavas uma raça inteira
Com teus
coleios de onça traiçoeira
E com o
feitiço do teu colo nu...
Mas, quem te
olhasse, a sós, na noite quente,
Ah! como te
acharia diferente
Ao ver-te,
olhos molhados, a chorar,
Tua guitarra
amiga dedilhando,
O teu fado
liró, triste, cantando
E os dois
olhos perdidos lá no mar...
Se me alegra
o te ver brasileirinha,
Oh! lusitana
e doce língua minha,
Não me
envaidece, entanto, essa ilusão...
Que hás de
ser portuguesa, na verdade,
Enquanto
houver no mundo uma saudade,
Uma
guitarra, um fado e um coração!
E então, de outra vez, quando tive que
falar sobre poesia, apresentando uns jograizinhos, pareceu-me muito sensato
falar das tendências estéticas da poesia moderna, dos seus característicos, sua
influência, e como pelo modo novo de os recitar e interpretar, os declamadores
atraíam a atenção do povo, quase disse da plebe, para a poesia nossa de hoje.
De ontem, que hoje nem os jornalistas, repórteres, profissionais da
comunicação, que falam em rede nacional, sabem o que significa a palavra
leitura e declamação, acentuam mal as palavras, dividem mal as sílabas. Bom...
falei do hermetismo, e falei das pesquisas em torno das palavras, e falei das
onomatopéias, e falei da poesia pura, sem metro e sem rima, e falei das
incursões no subconsciente. Para ilustrar minhas palavras, vieram os jograis de
Lorena e recitaram um longo poema descritivo de Judas, “Os que vêm de longe”,
bem avesso a tudo quanto eu havia dito, tanto pelo tema, como pela forma.
Vocês não queiram mal aos que vêm de longe,
aos que vêm sem rumo certo, como eu vim;
as tempestades é que nos atiram
para as praias sem fim...
Os que vêm de longe, os que vêm famintos,
os que vêm rasgados de dar compaixão,
os olhos parados, os pés doloridos,
pisando saudades calcadas no chão...
Vocês nunca souberam o que é tempestade
na vida de um homem... e nem saberão!
É a seca na mata... é o mato rangendo,
é a terra tostando, virando zarcão...
É a gente morrendo na estrada vermelha
vendo trapos humanos lutando com o pó...
E as levas se arrastam penosas na estrada,
enchendo as estradas de angústia e de dó...
É a gente, sentindo tonturas na alma,
piedade divina dos céus implorar,
e ver que somente uma gota nos brota
dos olhos cansados de tanto chorar...
É o gado morrendo de fome e de sede,
morrendo e mugindo num doido clamor,
e a gente morrendo de sede, e sonhando...
— a gente tem mesmo de ser sonhador... —
sonhando com água, que ao menos o gado
liberte da angústia da sede e da dor...
E os trapos humanos se arrastam rezando,
caindo, chorando,
sofrendo e clamando por Nosso Senhor...
É a gente ter nalma esperanças e sonhos,
viver da ventura dos olhos de alguém,
um dia encontrar a palhoça deserta
e saber que, faminta, arrastando-se além,
aquela que amamos a leva maldita
levou-a também...
É a gente sofrendo de ver a desdita
sorrindo dos homens... Olhar para o céu,
fechar a palhoça e sair pela estrada,
sem rumo, sem nada, dos ventos ao léu...
E o céu lá em cima piscando de quente...
Lá longe a palhoça ficou, triste e só...
Um fiapo de nuvem vem vindo... vem vindo...
e a gente vai indo com os olhos na nuvem,
os pés escaldando na areia e no pó...
Depois, já se sabe... Depois é isso mesmo ...
a gente vem vindo, tal qual como eu vim,
sem Deus, sem destino, sem sorte, sem nada,
até dar à costa num mundo sem fim...
Vocês não queiram mal aos que vêm de longe,
rasgados, famintos de dar compaixão...
os olhos na terra ... os pés doloridos...
pisando saudades
calcadas no chão ...
De verdade, Judas não se
filiou ao Modernismo, especificamente como Escola, e até é bem conhecida sua
ojeriza por tudo quanto cheire a extremadas preocupações de audácias herméticas
e informais. E como essas coisas ocorrem em
e aos poetas adolescentes, também
ficou muito conhecida sua expressão “Esses mocinhos...!” seguida da careta mais
azeda do mundo.
Contudo, o que o aborrecia
era a pseudo-poesia, e isto deve acontecer a todos os poetas, em qualquer parte
e em qualquer língua. A seu pesar, ei-lo participante de uma escola que não
ama, eis que já seguiu as tendências modernistas, e há muitos anos seus poemas
têm um sentido bem mais libertário.
Mas não é Judas que muda.
É a forma da poesia. Os mais novos, a geração última se preocupa com uma
disciplina mais rígida. Paulo Bonfim, a quem Judas censurou o ter abandonado o
manso lirismo que caracterizou “Antônio Triste”, bandeou-se para os metros
tradicionais, em falta de outros mais harmoniosos e que melhor dissessem seu
pensamento.
Domingos Carvalho da
Silva, dos “novos” de 1945, também esporadicamente excursiona pelos arraiais da
tradição.
Judas Isgorogota fez uma
coisa que nos parece sábia. Publicou o que julga de melhor em sua poesia, num volume
que é uma antologia poética.
Ficamos sem saber quem é
mais humilde e generoso: se aquele poeta que nos oferece tudo quanto escreveu,
numa tocante oferenda, e num entregar-se completo ao julgamento, ou se aquele
que escolhe e condena parte do que lhe custou, quem sabe lá o que, para
oferecer o que julga ter de melhor.
Ou quem sabe não será
orgulho de poetas, uns reputando boa a sua obra inteira, outro pensando que
sabe discernir melhor do que quem lê.
Mas não façamos indagações
bizantinas. Os antigos disputavam sobre os anjos, quantos deles caberiam na
ponta de uma agulha, ou se eles poderiam mudar de um lugar para outro, sem
passar pelo meio.
Digo que são tudo nugas, e
que devemos buscar a poesia e não o resto, que não importa.
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