quinta-feira, 9 de maio de 2013

Homenagem a Cassiano Ricardo

Ruth Guimarães 

Acho que já contei esta história mais de uma vez. Ou aqui, ou em entrevistas, não sei. Mas Cassiano vale o contar de novo. 

Tenho ainda a edição que pertencia a Américo Mascate, de Martin Cererê. Porque quando Mascate morreu, herdei. De tanto que gostei dele. 

O modernismo estava começando, saindo daquelas inacreditáveis declamações escolares de Valentim Magalhães para serem ditas em voz profunda e ar tempestuoso: 

Encaram-se de frente as duas 
[construções: 
Uma é robusta e má, sinistramente 
[austera, 
Cheia dessa nudez que esmaga 
[ os corações... 

E surgiu Cassiano Ricardo. Este poeta de São José dos Campos, que estudou Direito em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas que era das letras desde sempre. Aos 12 anos fundava uma revista: Íris. 

Versátil. Criativo. Lírico. Satírico. Crítico. Memorialista. Mas principalmente poeta. Ele me mostrou a Poesia. Aprendi quase todos seus poemas de cor: O meu rosto de terra/ ficará aqui mesmo/ no mar ou no horizonte./ Ficará defronte/ à casa onde morei. /Mas o meu rosto azul, /O meu rosto de viagem,/ esse, irá pra onde irei./ 

Tenho uma dívida para com Cassiano Ricardo: ele me emancipou dos simbolistas e dos parnasianos. Sua poesia tinha uma mensagem moça, renovadora, libertadora. Nem sei quando aconteceu, mas sou literata graças a esta formação recebida sem nem perceber. Só não me fez poeta, porque poeta acontece. 

Aos quinze anos perpetrava este poema cassianíssimo: 

Oitenta e tantos anos sobre-humanos... 
Passaram de vagar 
E sobre uma cabeça amontoaram 
Flocos de neve, desenganos, 
Retalhos brancos de luar. 

Estes comentários não são notas apenas, mas um testemunho. Há muito que eu queria oferecer este poema a Cassiano Ricardo, que o modelou, que o inspirou, que contribuiu para a minha formação intelectual e que só não fez de mim poetisa. 

Poderia, talvez, tê-lo escrito e mandado com uma carta ao poeta. Mas assim, sem dramatização, perdi o seu significado. Sim, já sei que é essa é a maneira mais cabotina de apresentar as coisas. Mas aprendi também que somente o cabotino é inteiramente sincero. Ele é o que tem a coragem de dizer o que pensa de si mesmo. 

O que aconteceu, em continuação ao Martim Cererê, foi que encontrei um dia Vamos caçar papagaios e nada vi nele de excepcional. Os mesmos cromos. O mesmo verde-amarelismo, um paisagista encantador o Sr. Cassiano, ora muito bem! Mas... e o poeta? A revelação não se havia repetido. Mudaria o poeta ou mudei eu, qualquer das alternativas era uma dor. 

E foi por isso que, ao deparar com a Face Perdida tive outro encantamento. Esse foi o livro da graça reencontrada. A verdade é que o poeta continua sendo o mesmo panteísta enamorado. Há poemas feitos de relâmpago em todas as cores, nerudianamente daquele melhor nerudiano, presente em Residencia su la Tierra. 

Abro meu guarda-sol 
Contra uma ave de fogo. 
Desço a aba do chapéu 
Sobre os olhos diurnos. 
A matéria ferida 
Cospe flores e música 
O menino demônio que vendia jornais 
Nos estribos dos bendes 
Virou rosa do reino 
Da metamorfose. 
Há uma poça de sangue 
Sob o céu de safira. 

Cassiano Ricardo, jornalista, poeta e ensaísta, nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974. Eleito em 9 de setembro de 1937 para a Cadeira no 31, na sucessão de Paulo Setúbal, foi recebido em 28 de dezembro de 1937 pelo acadêmico Guilherme de Almeida. 

E, ora, quem diria! Somos confrades.

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