Ruth Guimarães
Enfim, estávamos falando da poesia contida nos mitos indígenas, bem ao contrário daquelas bruxas americanas de Halloween (se é assim que se escreve). Enfim, a Cobra Grande era a mesma rainha Luzia, por via dessas fantasiosas transformações do mundo encantado. E de repente a moça não queria mais casar. As untanhas perguntadeiras insistiam: - Casa. Não casa? Por que não casa? E o sapo-boi, em voz grave: Por que foi? Por que não foi? Até que a Boiuna, a temerosa Boiuna, a negra Cobra-Grande, deu no rio um nó, que fez as águas pararem no ar azul. Quando ela repetiu, porque não casa, e as serras reboaram com o vozeirão, a noiva esclareceu, tão docemente que mal se ouviu: com este sol quente, tão claro, tão sem mistério... sem nenhum escurozinho no mundo, como posso fazer dormezinho com o meu amor? As faces da princesa ficaram cor-de-rosa, como o céu, hoje de madrugada. Aí todos repararam: sombra nenhuma, em nenhum canto, nunca! É mesmo, gente! Esqueceram de providenciar a noite!... E a bicharada toda secundou: neste mundo falta noite! E a Cobra-Grande amansou: - Ah! É isso? Tem nada, não, minha donzela...
Logo a floresta inteira ficou sabendo que iam buscar a noite no fim do mundo, onde ela estava guardada. Foram dois índios, latagões de peito largo. Na saída a Cobra-Grande recomendou:
- Vão buscar um coco de tucumã maduro! Venham direito pra casa, não conversem com ninguém, nem entre si, e não abram o coco. Ele tem que chegar aqui do jeito que sair de lá. Entendido?
Os dois índios retrucaram com pouco caso: Ara!
Eles foram longe, andaram mil léguas desenroladas na distância. E era longe. Subiram e desceram serra. Passaram e repassaram rio. E era longe por demais. E, com muito andar, chegaram.
Quem entregou a noite, não sei. Não me contaram. Os mensageiros na sua canoinha vieram, rio-abaixo, rio-abaixo, rio-abaixo, e nunca mais chegavam. O coco tucumã ficou no fundo da igara, bem fechadinho com breu. E era grande e escurão. Dentro dele cabia o que?
Segurando-o na mão, era leve. A casca não deixava ver coisa alguma. Chegando-o ao ouvido, um rumor vinha dele. Que será isso? eles se perguntavam, mergulhando os remos na água tchá! tchá! tchá!... E, no coco, aqueles rumores. Os índios não sabiam que tinham ido buscar a noite.
Cada um por sua vez agarrava o coco e o volteava nas mãos, pensativo. Que é isso? Está vivo? É gente? É bicho?
Ah! Era a noite, e não sabiam.
Até que a curiosidade não pôde mais. Eles derreteram o breu e abriram o coco. Na mesma hora, tudo escureceu. E aquilo que fazia barulho dentro do fruto foi saindo do ninho úmido e frio: saiu o vaga-lume, no arremate de um traço de luz. Saiu o pernilongo finfinfinfirifinfin. Saíram os sapinhos, que passam a noite poetando foi-não-foi-foinãofoi.Saiu o grilo cricri. Saiu a onça com patas de lã. Saiu o corujão de voo silencioso e de risada escarninha. E a suindara, cortando mortalha. Saiu o tristíssimo semfim. Patearam pela floresta a pantera, a pixuna, o caititu. As serpentes sibilaram, buscando as tocas. E tudo quanto era bicho noturno, silvando, bramindo, urrando, zinindo, miando, gritando, bufando, coaxando, povoou a grande noite recém-criada.
Os dois mensageiros infiéis viraram macacos. O breu que escorreu do coco deixou-lhes um traço negro na boca. Nunca mais saiu.
Foi assim que apareceram no mundo os jurupixunas, macacos de boca preta. O grande coco esvaziado encolheu, encolheu e virou esse coquinho tucum, que todos conhecem.
E o casamento?
Contaram os poetas que a filha da Rainha Luzia fez dormindinho no escuro.
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