quinta-feira, 9 de maio de 2013

Gente negra

Ruth Guimarães 

Haver eleito presidente negro mexeu com o comportamento das minorias raciais no mundo, ainda mais porque vem de um país preconceituoso, racista e intolerante, dono das leis e das finanças . 

Já tivemos um Rodrigues Alves – pois é, ninguém nem se lembra que ele era negro. Ou da raça negra, para sermos politicamente corretos. 

Mas a comoção por que ele existiu não foi muita e não fez o mínimo barulho. E quanto à existência dos santos, no bom sentido católico de medianeiros e intercessores, de que há notícia ocidentalmente, sob influência da civilização a partir de Cristo – não há registro . 

E São Benedito? – indagarão. 

São Benedito é o santo do Vale. E há alguns outros, todos da tradição católica: São José Operário, Santa Maria, Nossa Senhora da Conceição, Aparecida, Santo Antônio casamenteiro, Santa Rita dos Impossíveis, que assiste em todas as cidades, nos arredores, num bairro pobre, Santa Edwiges dos endividados, São Jorge, São Cristóvão, cuja notícia brilha pela ausência no Flos Sanctorum, ou lá está, mas não combina com a adaptação popular. 

Os santos do universo folclórico, existentes por via da fé católica, e alimentados pela imensa e a expressiva religiosidade brasileira citam o nosso comportamento e estão muito perto das populações mestiças, pobres. Vamos encontrar estandartes de ambos nas congadas e moçambiques, nas danças rurais antigas, como o jongo. A santa está nas irmandades religiosas, fundadas pelos próprios negros, com o fim específico de prestar assistência religiosa e social. 

Em São Paulo, na Capital, existe a igreja do Paissandu, construída e mantida por uma irmandade de homens pretos, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário. 

Nos altares, os nomes e as imagens são: a Virgem do Rosário, Nossa Senhora Aparecida, São Benedito, Santo Antônio do Catigiró, Santa Efigênia, Santa Maria Egipcíaca, santos negros ou enegrecidos 

O culto a Nossa Senhora do Rosário se espalhou por toda a parte. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário providenciavam o enterro dos escravos evitando assim o nefando abandono do corpo morto às aves do céu, quando se deixava nos campos, ou aos peixes, quando simplesmente se atiravam os escravos defuntos em qualquer água corrente. 

São Benedito, que pode ser São Bento de Núrcia, Bispo, e existiu no 5º. Século, passou a ser o São Benedito da gente das senzalas. 

Quando? 

A lenda de São Bento/Benedictus/Benedito aconteceu assim: 

Assevera-se que ele era um frade da ordem dos beneditinos, muito bonito: alto, claro, de olhos azuis, tão atraente, tão formoso, que as mulheres o perseguiam até na casa de Deus. 

Iam confessar-lhe pecados inventados, assistiam às missas que ele rezava, mandavam-lhe bilhetes apaixonados. 

E assim foi, até que o santo não podendo mais agüentar o assédio suplicou a Deus, rojando-se no chão, que o fizesse ficar feio, horrível, para não mais atrair as mulheres. 

Vejam a discriminação! 

No outro dia, amanheceu preto. 

E, outra vez a discriminação, no restante da história: 

Como a ordem dos Beneditinos não aceitava nos seus conventos a gente de cor, ele foi rebaixado para a cozinha. 

Como santo-cozinheiro, ele lidava com a negraria do ganho, alguns forros, e com os escravos, que a Igreja também os tinha. 

E estamos no campo da discriminação mais uma vez: 

O santo, de acordo com sua lenda, não suporta que o chamem de negro. Ele manda castigos. É susceptível e vingativo. 

Em Cachoeira Paulista, Vale do Paraíba, corre a história de certa moça, ,muito católica, devota de São Benedito. Morava na Chácara do Moinho, perto de um riacho. Quase na hora da procissão desse santo, que ela queria acompanhar, o pai entendeu de pedir-lhe para buscar um pouco de fubá , no monjolo montado sobre o riozinho. 

- Pai, disse ela com bom modo, - eu vou depois que voltar da igreja. Está quase na hora da procissão. 

O pai se indignou com a resposta: 

- Primeiro mando eu, que sou seu pai. E depois, não é por minha vontade que você vai andar atrás daquele negrinho. 

A moça começou a chorar e, como era obediente, foi buscar o fubá. Ao atravessar a ponte, sobre o córrego, no dia límpido, com sol quente, caiu um raio nela que a queimou dos cabelos até os pés. Morreu, nem parecia que estava morta. Somente que empreteceu, pretejou, ela inteira, um negrume só, como uma estátua de São Benedito. 

No Rio de Janeiro ainda é viva a lenda da escrava Anastácia, por quem se apaixonara o seu senhor. Violentada por ele, amordaçada e supliciada pela esposa ofendida do amo, foi deixada na senzala, com um ferro circular fechado com tranca no pescoço, e com ferimento de onde resultou gangrena. Depois de dias de indizível sofrimento e de abandono, sobreveio a morte. 

Dizem que na África era filha de princesa, filha de um rei banto. Foi enterrada no cemitério dos Negros Forros. 

E começou um culto para a pobre judiada, na Igreja do Rosário e de São Benedito, no Rio de janeiro. Um ícone, representando uma negra velha, ligada a uma golilha de metal, existente no Museu do Negro da Igreja do Rosário. É a tia Anastácia. Tanto a aparência da velha, como o tratamento – tia – estão em desacordo com sua lenda de paixão, ciúme e vingança. 

Mas quem espera verossimilhança no País da Lenda?
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto

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