quinta-feira, 9 de maio de 2013

Festa do Bonfim

Ruth Guimarães 

Já falei da Bahia, já falei do Cristo baiano, dos seus meninos. Gosto de falar da Bahia. Já falei da festa do Bonfim? Certamente estarei me repetindo, mas vou falar outra vez. De outro jeito, mas outra vez. Como diz a canção: você já foi à Bahia? Não? Então vá! E começar pela festa do Bonfim é um bom começo, vou contar porquê. 

Dos elevadores Lacerda até a igreja do Bonfim é um estirão puxado, talvez quinze quilômetros de paralelepípedo irregular. A festa do Senhor do Bonfim começa da maneira mais pagã, com a concentração das “baianas” no cais Cairu, com suas blusas de renda e saias engomadas sobre anáguas muitas, de roda. É pela manhã. Cheira a cidade baixa, à maresia, e à fruta quente. Já não falo nas angélicas de doce perfume. Braçadas delas estão nessa procissão singular. Cada baiana, toda de branco - roupa tão alva, nunca vi! alva como o açúcar, como a espuma que borda a água negra do cais – cada baiana traz na cabeça uma jarra de prata. Não sei de onde elas conseguiram essas jarras, algumas antigas, de louça, de barro vidrado, de metal com raros lavores e outras pintadas, todas belas. Nelas vai a água para lavar a igreja do Bonfim. Com as hastes mergulhadas nessa água, estão os ramalhetes de angélica, de perfume estonteante. 

Ei-la a procissão, ou não sei que nome lhe dê, que não tem o beneplácito dos sacerdotes. Formam à frente das baianas, duzentas, quinhentas, não sei quantas, lindas na alvura sem par de suas vestes. Atrás, em fila, bem enfeitadas, todas as carroças da Bahia, tantas, meu Deus! Encabeçadas por aquela onde toma assento, em roupa de grande estilo, o Sr. Presidente do Sindicato dos Carroceiros de Salvador. Os enfeites variam ao infinito. Há bandeirolas de papel de seda, folhas de coqueiro, guirlandas, arcos, bolas de soprar, flâmulas, papel repicado. Os animais também tomam parte nos enfeites. Ornam-lhes a testa estrelas e penduricalhos de toda a espécie, num colorido que por si é uma festa. 

Acabam-se as carroças e vêm as bicicletas, com aqueles mesmos enfeites de uma arte primitiva e em cores fortes, nítidas, cores de Brasil nacional, tão cor-de-rosa, tão azuis, tão verde-mato, tão vermelho de passar em maçã do rosto de moça caipira! tão amarelo cor-de-abóbora, tão roxo cor de batata. E atrás de tudo vêm os jegues sozinhos (que antes já passou muito jegue puxando carroça). Mas esses jegues de cerra-fila são muito especiais. Vêm mais enfeitados, não são montaria de ninguém, só louvando o Senhor do Bonfim, que pelo visto, também aceita as homenagens da criação irracional. Mais pensativos parecem, mais cinzentos, com uma doçura maior nos grandes olhos castanhos, pestanudos. Mais lãzudos no pelo, mais compenetrados. Vão e vão, gente e jumentos. Ah! O sol vai bem alto e bem quente, quando a procissão, ou não sei como chamá-la, invade o largo do Bonfim e enche o adro. O vigário está dizendo que é por essas coisas, essa procissão sem santo e sem estandarte, sem padres e sem filhas de Maria, sem andores e sem pálios dourados, é por isso que os sulistas xingam a Bahia de terra atrasada (mentira dele!). E por essa lavagem de igreja e essas práticas de superstição etc. Isto diz o padre e fecha a igreja. Com o que ninguém se importa. Começa a lavagem da porta para fora, cada degrau da escadaria de acesso é lavado e esfregado, a água escorre lustral, esvaziam-se as jarras, as braçadas de angélicas são atiradas ao chão, amontoam-se cheirosas, e o sol é quente e claro, as vestes alvas, luz, gente, movimento. A festa do Bonfim começa. 

E então até os padres se desdizem: neste ano de 2009, pela primeira vez em 254 anos de história, um representante da Igreja Católica abençoa os participantes da Lavagem do Bonfim. Padre Edson afirmou que a iniciativa foi tomada por uma questão de “sensibilidade pastoral”. Deu no jornal, Juca! Diria minha avó lendo para o meu avô. E o pároco ainda disse que é baiano e que gosta muito de cortejo. 

Essa resposta me faz lembrar de Monsenhor Neves, já contei isso naquela outra crônica sobre baianos, mas vejam só a coincidência: Éramos colegas de magistério, numa escola de cidade do interior. Conversávamos freqüentemente. Os assuntos eram os costumes, a literatura, a educação, os valores morais. Com base no rumo dessas opiniões, das dele, como sacerdote, eu lhe perguntei certo dia: 

- Padre, o senhor é católico? 

E ele, rápido, sem parar para pensar, e com um ar assim de quem corrige uma asneira: 

- Dona Ruth, eu sou baiano... 

É festa do Bonfim. A Arquediocese sempre limitou a festa apenas ao adro e as portas do templo permaneceram fechadas, mas este ano o templo será aberto. O público ainda não tem direito de ali entrar, mas o cortejo, a festa, a procissão ou não sei que nome lhe dê, não tem o beneplácito dos sacerdotes?

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