quinta-feira, 9 de maio de 2013

Fernando Góes, o boêmio

Ruth Guimarães 

Ninguém sabia nada da vida dele. De dia estava sumido. Aparecia à noite, sempre bem vestido, vinha de algum bairro distante, e ele sozinho povoava a noite paulistana. Estava a par de todas as notícias e escrevia como nenhum outro jornalista, sempre por dentro dos acontecimentos. Assinava noticiosos artigos e não tinha nenhum livro publicado, apesar da contínua presença nos diários da capital. Velho Amadeu estrilava. Que vida mais sem rumo! Deixe o sinal de sua passagem por este mundo! Fernando Góes ocupava-se com o movimento da Negritude, que não levava a nada, fechado e limitado como estavam as associações carnavalescas ou de clubes suburbanos, de danças de samba paulista, no estilo da Vai-Vai e outras. Não era difícil encontrá-lo na rua Direita, feudo negro que começava na praça da Sé, e ia até os começos do Viaduto do Chá. Aos domingos, e na Baruel nos dias de Semana, entre as seis e oito e meia, nove horas. De livro não se cogitava, isto é, ele não cogitava. Coração a mil por hora. Cabeça idem, idem. Os artigos brotavam, jornais publicavam. Quem foi que inventou que Fernando Góes era gente de Academia? 

Mas os amigos sabiam quem ele era. Em artigo no Diário de São Paulo, chamado Goés na Academia, cujo autor não consta da fotocópia rasgada dos meus guardados, quando de sua candidatura “Fernando Góes já deveria estar na Academia há muito tempo e não sabemos porque cargas d’água ainda lá não está. É o homem de letras na mais perfeita acepção do que isso faz entender. Tal como Paula Ney, nem precisaria escrever livros para inscrever-se no rol dos literatos. Postulando sua eleição para a nossa Academia, tardiamente, não pela idade, mas pelo valor, Góes procura, certamente, uma compensação e não a consagração que já se lhe deu. Também não está pensando em imortalidade, que o Góes não é disso. Sabe muito bem que as Academias não imortalizam seus integrantes; poderão, quando muito, empenhá-los por tempo indeterminado. Esta a relação ainda não comentada entre academia e taxidermia. 

Professor de literatura, escritor, poeta, ensaísta, jornalista – Góes é tudo isso, brilhando em todos os campos da linguagem escrita e falada. Antes de conhecermos o ilustre pré-acadêmico, julgávamos ser o vocábulo “literato” um substantivo abstrato; após conhecê-lo de perto, ficamos sabendo que se trata de um substantivo concreto, palpável, visível e audível. 

Góes é o literato físico, na sua forma mais expressiva. 

Acolhendo-o ao seu seio olímpico, estará a Academia Paulista de Letras mais ganhando do que dando. Estará fazendo justiça a um dos mais autênticos intelectuais de São Paulo, cuja ausência naquela Casa é um senão a corrigir. Se se tratasse de um pleito político, diríamos que Fernando Góes é o candidato do povo. Mas não se trata disso, felizmente. Góes não tem eleitores, tem leitores. Somos todos nós que vivemos dentro ou na periferia das letras, que amamos os intelectuais puros e despretensiosos, verdadeiros, sinceros, lutadores obstinados como é este digno candidato à cadeira de Ezequiel Ramos.” 

Foi preciso juntar artigos publicados em jornais e que se considerasse uma obra total o seu livrinho de cento e poucas páginas. Ele foi considerado alto expoente pelos seus pares e trabalhou com afinco e ardor pela Academia que amava, e por isso fez muito pela Literatura. Acontece que no seu tempo ele foi dos membros mais atuantes e ajudou a devolver à academia o seu destino literário.

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