Ruth Guimarães
Há muitos anos abordei um problema de ética. Há muitas décadas. Mas isso não importa, o tempo não está no mérito do que vou contar.
Problema grave de ética foi esse. Cada um resolveu de acordo consigo, isto é, como devia, o que não impediu que alguma injustiça fosse cometida. Aliás, tendo sido como foi, um fato injusto em si mesmo, devido à sua natureza, a injustiça estava presente tanto no falar como no calar; na ação como na abstenção; na dúvida e na certeza, no constrangimento, no espanto, na raiva, e no temor; na tristeza pelo que envolve de condenação, na compaixão pelo que infere da inutilidade de qualquer providência. Ai! amigos, não é de morte que estamos falando.
Ora se deu que um autor, não vale a pena citar nomes porque já foi julgado e condenado uma vez. A lei diz que alguém não pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. Então, ora se deu que um autor publicou um livro de contos, mas quando o livro sai, vem a público o escritor que realmente o escreveu. Dá entrevistas a vários jornais, queixa-se, estrila, debate. O livro era dele. “Entreguei-lhe os originais para serem levados à editora. Ele conhecia muita gente.” – explicou o autor ludibriado.
Houve muita parcialidade a favor do moço, rapaz brilhante, poeta de livro publicado com seguros conhecimentos, pois o outro, bem, quando se falava nele a pergunta inevitável era: “Quem é esse?” Incoerência. Mas um escritor não tem culpa de ser um quarentão sem graça sem prosa e sem genialidade.
O assunto tem seus ângulos muito agudos e arestas muito dolorosas, e talvez seja excessivo encará-lo apenas de um ângulo favorável a um pobre menino desarvorado. Calar será fazer justiça? Parece-me que nem a um nem a outro. Um tem motivo de tornar pública a sua queixa, outro tem o direito de se defender e apresentar seus motivos. Eis que calar seria no mínimo uma solução muito unilateral, pois há um que ficou lesado. A recusa de comentar o assunto a sério, por escrito, por outro lado, condena os dois: um à sua mediocridade, outro ao seu desvario.
Não quero maldar da perfeição ética dos nossos intelectuais, nem duvidar de forma nenhuma. Pergunto-me entretanto se a ética seria a mesma se o lesado fosse um dos consagrados, se fosse Guimarães Rosa ou Orígenes Lessa, por exemplo.
Eça de Queirós nos recomendou, em 1880, no seu conto O Mandarim:
“E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!”
E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do Norte ao Sul e do Oeste a Leste, desde a Grande Muralha da Tartária até as ondas do Mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão.”
No entanto, continuamos matando mandarins. Diga-me: você mataria o mandarim?
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