quinta-feira, 9 de maio de 2013

E se houvesse estrada de ferro?

Ruth Guimarães 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
A oposição estrada de ferro versus estrada de rodagem ficou muito forte nesses trinta anos de desleixo quanto à primeira. 
No entanto, num país de dimensões continentais como é o nosso, sabemos que o ônibus não é o melhor meio de transporte coletivo. Não tem sentido fazer uma viagem de três dias fechado numa gaiola, sem ventilação, sem espaço. Não se pode esticar as pernas, as crianças não podem correr pelos corredores, o banheiro pesteia o ambiente em pouquíssimo tempo. Em época de festas não se encontram lugares para a data que se quer, os congestionamentos são quilométricos, os preços de seja lá o que for nos restaurantes das paradas é no mínimo duas vezes maior que em outro lugar. 

Todos os implicados nesse processo têm plena consciência do que se deve fazer para mudar isso, assim como sabem quanto tudo isso vai custar em tempo e em dinheiro, principalmente. 

As estações de trem que estão no Vale do Paraíba foram transformadas em bibliotecas, museus, centros culturais, ou estão caindo, tombadas. 

Os mourões foram sendo roubados, de trilhos passaram a cercas nos quintais vizinhos. As estruturas foram aos poucos desmoronando, se esfacelando. Fomos deixando que se desmantelassem e agora a reconstrução ou a reforma não é mais viável. 

A solução é derrubar tudo e começar de novo. Começar do alicerce, da base. Solução cara. Enquanto as estradas de ferro ruíam, as de rodagem floresciam – pedágios foram construídos, foram feitos melhoramentos nas pistas, recentemente a Nova Dutra investiu muito na estrada que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, instalando postos de socorro em toda a estrada, entre outras coisas. No entanto isso não torna a viagem mais agradável para o passageiro de ônibus. 

A estação de Cachoeira Paulista era suntuosa – pias de mármore de carrara autêntico, trabalhados, portas e janelas de pinho de riga, telhas de Marselha. Não foi a chuva que apodreceu sua madeira ou que arrancou seu telhado, mas o que resta hoje, 20 anos depois de seu tombamento pela CONDEPHAAT, é só a casca de um patrimônio abandonado. Refazer o quê? Não sobrou mais nada. Agora é preciso construir outra coisa em seu lugar. 
Reconstruir uma estação à beira de trilhos por onde não passam mais trens... 

Ou deixemos que ela caia de vez ou recuperamos a vida que os trilhos perderam. 

As estradas de ferro fizeram florescer cidades em sua volta. O Vale do Paraíba é um exemplo disso. Mas quando a estrada já não levava mais a lugar algum, o que aconteceu? Algumas mudaram de perfil, ficaram mais industriais ou mais agrícolas. Outras no entanto viraram cidade-dormitório, cidade-passagem. Cidades Mortas, denominou-as Monteiro Lobato. 

A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruínas – nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflue com eles duma região para outra. Não existe peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas. 

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas. 

Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do chamado Norte. 

Ali tudo foi, nada é. 

Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito. (Lobato, Monteiro, Obras Completas de Monteiro Lobato – 1a. série, literatura geral, vol.2, Cidades mortas, Editora Brasiliense, SP, 1961, 10a. edição, pág. 03) 

Qualquer empresa que se instale em uma região gera empregos, e traz consigo o desenvolvimento do comércio. A população aumenta, a cidade necessita de uma outra estrutura – rede de esgoto, escolas, saneamento básico, calçamento das ruas. Se essa empresa decide que ali não é mais o seu lugar, o que foi realizado não é destruído, mas raramente vai continuar se desenvolvendo. 

A cidadezinha onde moro lembra soldado que fraqueasse na marcha e, não podendo acompanhar o batalhão, à beira do caminho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos postados na nuvem de poeira erguida além. 

Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do mundo, nem as estradas de ferro se lembram de uni-la à rede por intermédio de humilde ramalzinho, dizia Monteiro Lobato.
 
Botelho Netto
Foto de Botelho Netto

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