quinta-feira, 9 de maio de 2013

Deuses. Natais

Ruth Guimarães 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
Era quase Natal. E porque esperávamos o dia do Menino, as coisas do céu e da terra mudaram no sutil. Era como se os anjos de asas macias as agitassem brandamente. E o céu fosse ficando mais azul à medida que o sol, em chicotadas de luz... A alma não sei onde vai buscar a sua messe de anseio pelo que é nobre e é bom. Onde vamos buscar neste momento de tanta realidade brutal a conformidade e a esperança? Por que nos provam em chicotadas cruéis? E vamo-nos decidindo por uma faixa nebulosa de vida. 

Era Natal. Cada um de nós, mui comovido, lembrava ou pensava naquela divindade vinda da mais remota infância e da mais funda e ignorante indiferença – inocência. E então dela pouco sabíamos. Que conhecíamos nós de nós mesmos? Como poderíamos obter a nossa força de existir? Onde buscar as forças da alma? Felizmente, o que não nos falta são os guias, na estranha estrada que devemos seguir do nascimento até a morte. Todos sabem para onde devemos seguir. Todos sabem qual é o caminho reto. De certo modo, todos conhecem a história de Deus. Não é segredo nenhum, todos sabem como nasceu, como cresceu, como deitou raízes nos corações. Juntando-se as histórias, tratamos de uma biografia, ou romance, que tem fascinado os homens desde sempre. Alguns que dele mais se aproximam O explicam e ensinam como alcançá-lO. Eles, os santos, têm os seus anjos e os seus adeptos, o seu caminho e a sua verdade que se tornará a nossa, por escolha. 

Os alfarrábios, as cartas, as narrativas, dos discípulos dos indicadores de caminhos, esses pastores de povos. Como que eles se repetem às vezes. Amenhotep IV e São Francisco de Assis, aparecem estranhamente aparentados, na poesia com que viveram o amor de Deus, no entusiasmo com que criaram o cântico ao sol. 

Akenaton, o visionário, o velho Lao-Tsé, o orgulhoso Inácio de Loiola, o seco Lutero, o intransigente de São Paulo, todos esses colaboraram no reconhecimento de Deus. 

Maomé, o cameleiro que de certo modo foi também poeta, floriu o céu de huris, alcatifou-o de seda, amaciou-o com belos coxins de veludo, perfumou-o para o amor, abriu-lhe rios de vinho e de mel, definindo como as coisas mais deleitáveis deste mundo, e do outro, o beber e o amar. Porém, para alcançar tai delícias, o caminho passa pelo temeroso entrechocar das armas de pontas mortíferas, nas batalhas da guerra santa, se é que se podem aproximar sem choque esses dois vocábulos. 

Confúncio foi sensato, o que não é qualidade muito comum nesses enviados do Senhor. É Natal. O Menino vai nascer na manjedoura, entre o burro e o boi. 

Mas há 4.800 anos, a história se repetia. Conta-se que a trindade Védica era composta de três pessoas: Brama, Vishnu e Siva, três deuses, sendo o primeiro criador, o segundo conservador e o terceiro transformador. A santa sílaba AUM referia-se às três pessoas, uma letra para cada uma. A segunda pessoa Vishnu apareceu entre os homens cinco vezes; sendo estas as encarnações: Vanama, Parassurama, Rama, Crixena e Buda. Nesse particular avatar de Críxena, o deus Vishnu nasceu no undécimo dia da lua, do seio de uma virgem, Devanagui, sobrinha de Kansa. 

E aí está o Menino nascendo, entre o boi e o burro, significando humildade. 

E então sonhamos que o Menino dessa reencarnação do Deus vivo nos traz o socorro do céu, a unidade de Deus na Trindade, a imortalidade da alma, o socorro celeste, a crença no mérito e demérito, na recompensa e no castigo, no swarga, céu, e no náraca, inferno. 

Sim, este é Deus. Durante uma grande fome, Críxena alimentou a Índia inteira, fazendo a multiplicação de três punhados de arroz. 

Chamavam-no Críxena, que quer dizer sagrado. Cristo quer dizer o Enviado. 

Era quase Natal. 

A cada Deus que tenta nos salvar, os homens erguem uma cruz. 

Será que dá para dividir o pagamento do céu em dez suaves prestações de algumas centenas de moedas? Trinta, talvez? Um aparelho de som, carros de propaganda, berram na rua quanto é fácil comprar, comprar, comprar, e ser feliz. 

Um Papai Noel atravessa a rua para entrar na loja e sair de barba branca e casaco vermelho, símbolo moderno de espiritualidade e a tentativa de ensinar aos jovens do que é feita a felicidade. 

É Natal. Quase.

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