quinta-feira, 9 de maio de 2013

De vida

Ruth Guimarães 

Há muita coisa a se dizer sobre sexo, mas parece que uma das principais é esta: os órgãos genitais, com os quais o gênero humano também foi aquinhoado, à semelhança dos macacos e dos jaburus, são para uso de modo certo, na hora certa, com a pessoa certa. Jamais para serem implantados na cabeça, onde muita gente os deixa ficar para sempre. Nem serão para serem instalados como peso que não pode ser alijado da cacunda, à maneira do aflitivo símbolo: o velho que cavalgava Sindbad, o Marujo. 

O instinto genésico é o mais forte de todos os instintos e de todos os impulsos. Inato, vivo. A criancinha já o sente em todas as fibras do pequenino corpo ainda cheirando a leite. 

A única coisa neste mundo que realmente existe é o nosso anseio pela vida. Temos fome de tudo que leva à continuidade do indivíduo e à perpetuidade da espécie. E o que fazemos com esta fome? A que ela nos conduz? A uma vida melhor ou ao aviltamento e achincalhe do corpo? A um modo mais natural e hígido ou a que? Do prazer que é primordialmente o propulsor – PARA – fizemos o centro, o núcleo, o fim. E assim é que somos impelidos de e por, para nada. O que estava no objetivo final foi relegado para mero instrumento. 

As nossas cidades alinham e empilham trilhões de toneladas de asfalto e concreto. Aprisionadas nos bosques ornamentais, de tronco preto da poluição, tortas pelos vendavais contra os quais são protegidas. E o calçamento liso, infinito, se espichando pelas ruas. É bastante uma fenda, e ali brota um fiapo de capim, tiririca, espinho, pequena flora sem nome, arriscando a vida sob os pés do passante. Um pouco de pó no muro, a umidade do orvalho, e eis o musgo triunfante, de cor tão claramente especial, tão gelada e esquisita, que virou nome de nuança: verde-musgo. Eu vi árvores nascidas nos telhados de velhas casas, na Bahia, altas de muitos metros, balouçando-se à brisa das manhãs de luz. Na minha terra, na passarela de concreto, tufos de braquiária e de samambaia surgem nas junções, onde o vento deposita a poeira. Há vida na Groenlândia, no gelo, nas terras secas, no deserto, no pântano, nos mangues. No fundo do mar. No fundo da terra. A natureza adota o sistema do desperdício. As sementes que uma planta produz são incontáveis. O vento semeia. O pássaro semeia. As crianças pobres, que fazem cocô atrás das moitas, semeiam. Assim nascem, por exemplo, as goiabeiras nas fazendas. 

Uma mulher dá à luz 10-12 filhos, durante um período fecundo, de mais ou menos trinta anos. Muitas vezes ela não tem com que manter a própria saúde, mas o filho consegue tudo. Ela tem vermes, anemia, subnutrição, reumatismo, infecção intestinal, poderá sofrer do coração, da garganta, de bronquite – o filho nasce sadio. Cuidem dele e se desenvolverá harmoniosamente. A natureza sacrifica a cepa adulta em favor do broto que vem em cada primavera. É a vida. Vida que pulula de bichinhos – de minhocas, de larvas, de insetos, de vermes, de micróbios; fervilha, dança numa sarabanda vertiginosa, domina o mundo. Contra essa força monstruosa há apenas um recurso: a morte. A natureza emprega em larga escala esse disciplinador temeroso, e para que a morte também não exorbite, lá vem outro defensor; o instinto de conservação. Assim, o equilíbrio acompanha de perto os exageros: vida demasiada, comparece a morte – numa espécie de super-ego – o instinto de conservação, da própria vida e da espécie. 

Podemos seguir ou não a natureza. Somos animais pensantes, racionais, independentes, fazemos nossas próprias leis. Não nos interessa o saber se é primavera, se fomos feitos à semelhança dos outros animais, dos reles bichos que povoam conosco este mundo. Acontece que, quando por exagero, ignorância, ou absoluta impossibilidade de obedecer os mandamentos que a nosso pesar nos regem, saímos da estrada reta, o tratamento da reintegração é brutal. A compaixão não faz parte do equipamento dos deuses. 

Então é bom que saibamos o que nos convém. É bom que cumpramos a nossa parte, de boa vontade, antes de sermos arrastados nas avalanches, ou conduzidos pelo cabresto, aos pontapés e aos coices. 

Para nós que fugimos tanto dos procedimentos naturais, para nós que o estresse vem castigando com seu cortejo sinistro, impõem-se providências as mais corretas e imediatas. O tempo não espera. A vida não espera. A morte do corpo e da alma estão na tocaia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário