quarta-feira, 8 de maio de 2013

Crônica da cidade assassinada

Ruth Guimarães 

Tocaram certa vez os sinos, em desatinado alvoroço, quando uns homens empedernidos da minha terra espancaram uns missionários. Um dos religiosos foi empurrado, a outro deram-lhe pontapés. Este do pontapé caiu sem dizer palavra. Apenas olhou para o céu, como se o estivesse tomando como testemunha de tamanha iniquidade. Justamente nesse momento o sino desandou a badalar. Os tais homens empedernidos de minha terra entrepararam indecisos. Não fosse aparecer alguém com a ideia boba de que em padre só se bate da coroa pra cima. 

Subiram à torre para ver quem tocava e na torre não estava ninguém. O repicar do sino não mais se fazia ouvir, mas a corda ainda balançava. De leve, de leve. Talvez o vento. Esse diabo desse sino enfeitiçado, resmungou um deles, esquecido de que estava dentro da igreja. 

Os homens foram embora para casa, silenciosos, mas muito silenciosos mesmo. Além disso, com uma certa pressa. 

Sobre o caso caiu um insólito silêncio. Nem de boca a ouvido se espalharam os comentários. O povo começou a andar de cabeça baixa sem trocar saudações nem comentários, nem notícias. Sem risada, sem alegria, mas também sem brigas, nem protestos, nem acontecimentos, sem apitos de trem, sem buzinas, sem gritos de criança. Dormindo ou morrendo? Parecia que tudo iria ficar como estava, e aí deram de notar de depois da chuva, no local onde havia caído o missionário, pasmem! Ali não chovia. E então se dizia a bocca chiusa “É o preço do pontapé”...” Para acabar com a testemunha incômoda foi construído acima da porta indiscreta, no começo da pequena escada que da sacristia dava para a rua, uma espécie de toldo de lona, com uns enfeites azuis, e ninguém mais tocou no assunto. 

Quase todas as cidades do Vale do Paraíba se parecem com essas velhinhas rezadeiras, de saia comprida e de chinelos, que vestem os mesmos vestidos das avós de antanho. Não vão nem pra frente nem pra trás e acreditam. Como acreditam em tudo quanto se lhes diz! E como nada se faz de vivo, de trepidante, de pra frente, a cidade, a minha terra, virou a Bela Adormecida. Podemos contar histórias da história delas, e podemos acreditar que estão encantadas. Aqui não se fala em crise, nem monstruosa, nem marolinha. Aqui não se atribui ao mau governo a decadência e o marasmo de tudo quanto acontece. Quando muito se atribui a um castigo tudo quanto acontece ou não acontece. 

Por exemplo: não foi porque o FHC vendeu a Central do Brasil que ficamos num atraso sem conta, uma vez que perdemos a nossa principal fonte de empregos. Não foi exatamente o que ele disse em seu pronunciamento, na época.... «Na verdade, o que aconteceu com a malha ferroviária brasileira e com a rede ferroviária nacional é alguma coisa que, no futuro, vai estar nos keys-stands dos processos de modernização no mundo todo. Por quê? Porque a concepção que havia era a de que se existisse um setor que seria incapaz de um saneamento, de uma recuperação e de despertar o interesse do setor privado, era esse. Era a rede ferroviária que era, até há muito pouco tempo, lembrada simplesmente como sinônimo de ineficiência, da incapacidade de gestão do Estado, da impossibilidade de, efetivamente, atender as demandas dos produtores nacionais no transporte de mercadorias, para não falar de passageiros, que, há muito tempo, já eram testemunhas vivas da impossibilidade de termos um sistema eficiente.” 

Eu dizia que não foi porque o FHC vendeu a Central do Brasil que ficamos num atraso sem conta, uma vez que perdemos a nossa principal fonte de empregos. Mas estamos pagando porque alguém deu um pontapé no missionário. E é tão certo isso que nos foi mandado um sinal. Ali onde caiu gemendo o religioso, nunca mais choveu. 

Isso é verdade? É o que há de mais certo. É o que todos dizem. Meninos, eu vi! 

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