segunda-feira, 6 de maio de 2013

Bruxas x Assombração

Ruth Guimarães 

No limiar de novembro, entram duas efemérides de igual importância. A primeira, mal se inaugura o mês, o louvor a Todos os Santos, de onde aquela desenxabida graçola contra os caloteiros. Ou seja, os inadimplentes, para falar como gente civilizada. É que dia 1o é dia de todos os santos e quem paga no dia de São Nunca, eis aí, chegou o dia. E também, nessa época, saímos, por empréstimo de um mito europeu, entre nós mal ou fraca memória de algumas crendices da infância, isto é, as bruxas. Elas nos vêm de mistura aos primeiros cuidados da infância e aos primeiros mitos que lhe fazem mal. Pertencem à flora tenebrosa que nos apavora. Ah1 as bruxas. Definitivamente, as bruxas não pertencem ao nosso folclore. Não nos vieram subterraneamente, alojando-se em nosso subconsciente, e não nos farão tremer em noite escura, nem nas meticulosas sextas-feiras, estalando nos degraus da escada ou dando uivos pavorosos, quando o ponteiro do relógio vai chegando à meia-noite. 

Por muito que se faça, elas não são nossas. E não virão elas veredas do folclore. 

Não precisamos de campanhas para as bruxas irem embora. Elas irão por si, com barulho ou sem ele. Também não é necessário substituí-las por Saci Pererê. Este responde ao nosso chamado. 

Como está na moda a contação de histórias brasileiras, devo colaborar com uma dessas subterrâneas histórias valeparaibanas. 

Aconteceu na zona leste, onde se situa o cemitério da Vila Formosa, dito o maior da América do Sul, e, possivelmente dos mais pobres. O bêbado vinha que vinha, um passo à frente, um passo para trás, mais dois do lado, e nesse balé foi se chegando para perto dos grandes portões de grade. Passava por ali todos os dias. Nem via mais o campo santo, os altos ciprestes, as estátuas funerárias, as colunas de mármore luzindo palidamente ao luar, e a luz das lâmpadas amareladas da rua. O costume tinha feito de um lugar marcado para os medos atávicos uma parte invisível do cenário. 

Nesse dia, uma neblina fechada não deixava ver muito à frente, nem de lado nenhum. Nem haveria o que ver. O frio e a hora tardia seguravam em casa os cidadãos da Paulicéia, nem um pouco desvairada nessa hora de pausa. Dois passos para a frente, dois para trás, dois à direita, um à esquerda, bamboleio, e recomeça. E foi aí que ele ouviu o choro, um manso, fino, desolado pranto de criança nova, cansada de chorar. 

- Coitada! – resmungou. – Que coração de pedra de quem expõe uma criancinha na friagem! 

Foi se orientando para o lado do choro, dando violentas guinadas para a frente. E com essa chegou ao portão do cemitério. Nos primeiros degraus da entrada estava uma trouxinha de flanela encardida, dentro de um cobertorzinho curto, sem pelo. Levou a mão cautelosa, tocou a trouxa com as pontas dos dedos. Úmida do sereno da noite. 

Agarrou o embrulho com as duas mãos, coreografou o seu balé, retificou o corpo como pôde, e ajeitou na curva do braço a coisa choramingona. Não dava para ver bem. Ele apertou de encontro ao peito, num súbito gesto de ternura, a trouxinha miserável, e se tocou para a frente, pensamenteando vagas tristuras, não pode ser, gente! largar no sereno uma criaturinha de Deus. Chorou umas lágrimas de bêbado, depois do que um calor foi lhe entrando no coração, devagar, expulsando o friúme da noite. Milagrosamente, a criancinha se aquietou. Vinha dela uma onda quente, um cheiro ativo. E era leve, quase como se apenas a pobre roupa é que pesasse. Sim, senhor. Criancinha de um dia. Dois, quando muito, quem sabe? Que mãe tinha coragem de... chora não. Vai começar de novo? Sua mãe não tem coração. Vam’ vam’! Não chora. Que co’ nenezinho tem? O embalo era muito do desajeitado, um vai-vem de grandes gestos. De repente, o choro parou e de dentro da trouxa a criança falou, com voz forte, de homem: 

- Tô chorando de dor nesse meu dentão aqui. 

E apontava com um dedo fininho um dente de meia polegada. 

O bêbado se sobresteve, sem cambaleio nenhum. Atirou longe o bebê, com um berro tremido, e, sem sombra de balé prá-lá-prá-cá dois no meio, saiu numa corrida pela rua afora, ultrapassou o muro do cemitério, pegou a avenida deserta, e foi. 

Bem na esquina uma farmácia de escuros balcões antigos. Na frente um banco grande, de madeira. O banco. A farmácia. O refúgio. Fechado naquela hora. Descansar no banco. O banco. Correu com mais força, para o banco. A respiração queimava no peito, como uma chama. Que seria aquilo? O diabo. Alma penada. E quando viu, já estava quase alcançando o banco. 

O espaço vazio era tranqüilo. Pode ser a bebedeira. Diacho, que esses troços não existem. Um velho cabeceava, sonolento, sentado na ponta do banco e era um conforto a presença humana tão próximo. Humana e viva, mesmo dormindo. Mesmo um velho bêbado, se é que estava bêbado. Sentou pesado, o movimento acordou o velho, que relanceou um olhar. E ele mesmo olhou desconfiado. Será que o outro estava rindo? Zombando? Também eu, nessa correria desembestada... 

- Tá estranhando, né companheiro? Eu correndo feito louco, numa hora dessas, sem gente na rua, sem motivo, mas eu vou contar. 

Contou, que precisava. Meio atabalhoado, contou: que estava um pouco bêbado, vai ver que nem aconteceu. Agora nem sei direito. Era uma criancinha. 

- Ai, ai! Nem acredito que estou aqui conversando com gente como eu. Arre, que a gente leva cada susto. O senhor, vê-se que está com sono. Também, a esta hora... E sabe o que aconteceu? a criança parou de chorar, levou a mãozinha na boca. Eu já não contei? Entre os lábios apareceu aquele dentão esquisito, ai! 

Interrompeu-se. O velho não tinha falado nada, não tinha dito um “a”, e ia falar. Ele entreabriu os lábios, levou a mão à boca e perguntou, apontando: 

- Não será este dentão aqui?

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