quinta-feira, 2 de maio de 2013

Advogado entra no céu?

Ruth Guimarães 

- Bom dia! Ou será boa tarde? O senhor é... 

- Sou. - concedeu o barbaças – Mas quem faz as perguntas aqui sou eu. Como é o seu nome? 

- Não me diga que não sabe. 

- É para conferir. 

- João Antunes de Faria. 

Ficou vendo o velho percorrer o índice com o dedo grosso, canhestro, apontando. Parava aqui e ali e um nome era soletrado, com alguma dificuldade. 

- João Aguiar de Faria. Este não. João, João, João. João Antunes é outro. Este já veio. João Ávila... Passou. 

O dedo retrocedeu para cima, procurando, acompanhado pelos olhos ávidos do dono do nome. 

- Está aqui. João Antunes, an... An... An... Casado, brasileiro. Boa terra. Estive lá a passeio. Fui assistir a uma festa do Senhor do Bonfim. Vamos lá, João Antunes. Morreu de pneumonia, aos quarenta e quarto anos de idade. O nosso anjo escriturário é um colosso. Está sempre com o serviço em dia.Morreu ontem? – exclamou erguendo os olhos – Por que se demorou tanto pelo caminho? 

- Hein? – o outro se sobressaltou um pouco, pois seus pensamentos seguiam um rumo diferente. – Ah! sim! Os meus calos... 

O porteiro já voltava à leitura. 

- Nasceu an... An... An... Aventura, paixão, mentira, fuga, suborno... Noivado... Exerceu a profissão... HÃ! 

Arregalou os olhos e sua testa se pregueou de inúmeras rugas. 

- Advogado?! O senhor então errou o caminho... 

Levantou-se, fechando o livro com um golpe seco, definitivo. 

- Advogado não entra no céu! 

Ponto final. 

Antunes engoliu em seco. Antes que conseguisse se controlar, ouviu a si mesmo: 

- Protesto! Isso é um absurdo e uma injustiça! O simples fato de escolher uma profissão não poderá constituir óbice, senhor juiz, digo, senhor São Pedro! – dizia, dedo em riste, olhos fuzilando, no seu melhor estilo forense. 

Tal entusiasmo arrefeceu consideravelmente quando o Divino Porteiro voltou a sentar-se e abriu o livro, novamente, murmurando: 

- A profissão, não, doutor, é a tentação. O senhor sabe: perjúrio, má fé, negocistas, duplicidade, defender os culpados e atacar os inocentes... 

Antunes estendeu a mão, conciliador. – Não precisa verificar. Está certo. É a lei. Eu me submeto à lei. 

Parecia realmente satisfeito de poder concordar assim facilmente, é a lei, é a lei. 

- Bem. Vou tentar outro caminho. 

Suspirou. 

- Posso me sentar aqui na porta um instante? Vou tentar tirar os sapatos um pouco. Esses sapatos... 

- Se quiser. 

- Muito obrigado. 

Dali a pouco tornou a suspirar aliviado. 

- Mania besta de nos enterrarem de sapatos de bico fino. O senhor é que é um felizardo. Fica aí sentado, belamente, pernas espichadas, uma vez ou outra levanta pra ver uma ficha. Veja hoje: que placidez! Que calmaria!... 

- Às vezes é um lufa-lufa – contestou o barbudo. – Na grande Guerra,.. nas duas, aliás, e daquela vez de Hiroshima... 

- Isso não acontece todo dia. 

- Não? O Brasil não é fácil não! Massacre do Carandiru, matança de policiais, vingança dos policiais. E a boate, de onde mesmo? que teve o incêndio e tal! 

Eu não sei o final da história, mas pelo andar da carruagem, o advogado ainda restará sentado lá na porta do céu, com os pés descalços, segurando seu par de sapatos de bico fino.

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