Ruth Guimarães
- Bom dia! Ou será boa tarde? O senhor é...
- Sou. - concedeu o barbaças – Mas quem faz as perguntas aqui sou eu. Como é o seu nome?
- Não me diga que não sabe.
- É para conferir.
- João Antunes de Faria.
Ficou vendo o velho percorrer o índice com o dedo grosso, canhestro, apontando. Parava aqui e ali e um nome era soletrado, com alguma dificuldade.
- João Aguiar de Faria. Este não. João, João, João. João Antunes é outro. Este já veio. João Ávila... Passou.
O dedo retrocedeu para cima, procurando, acompanhado pelos olhos ávidos do dono do nome.
- Está aqui. João Antunes, an... An... An... Casado, brasileiro. Boa terra. Estive lá a passeio. Fui assistir a uma festa do Senhor do Bonfim. Vamos lá, João Antunes. Morreu de pneumonia, aos quarenta e quarto anos de idade. O nosso anjo escriturário é um colosso. Está sempre com o serviço em dia.Morreu ontem? – exclamou erguendo os olhos – Por que se demorou tanto pelo caminho?
- Hein? – o outro se sobressaltou um pouco, pois seus pensamentos seguiam um rumo diferente. – Ah! sim! Os meus calos...
O porteiro já voltava à leitura.
- Nasceu an... An... An... Aventura, paixão, mentira, fuga, suborno... Noivado... Exerceu a profissão... HÃ!
Arregalou os olhos e sua testa se pregueou de inúmeras rugas.
- Advogado?! O senhor então errou o caminho...
Levantou-se, fechando o livro com um golpe seco, definitivo.
- Advogado não entra no céu!
Ponto final.
Antunes engoliu em seco. Antes que conseguisse se controlar, ouviu a si mesmo:
- Protesto! Isso é um absurdo e uma injustiça! O simples fato de escolher uma profissão não poderá constituir óbice, senhor juiz, digo, senhor São Pedro! – dizia, dedo em riste, olhos fuzilando, no seu melhor estilo forense.
Tal entusiasmo arrefeceu consideravelmente quando o Divino Porteiro voltou a sentar-se e abriu o livro, novamente, murmurando:
- A profissão, não, doutor, é a tentação. O senhor sabe: perjúrio, má fé, negocistas, duplicidade, defender os culpados e atacar os inocentes...
Antunes estendeu a mão, conciliador. – Não precisa verificar. Está certo. É a lei. Eu me submeto à lei.
Parecia realmente satisfeito de poder concordar assim facilmente, é a lei, é a lei.
- Bem. Vou tentar outro caminho.
Suspirou.
- Posso me sentar aqui na porta um instante? Vou tentar tirar os sapatos um pouco. Esses sapatos...
- Se quiser.
- Muito obrigado.
Dali a pouco tornou a suspirar aliviado.
- Mania besta de nos enterrarem de sapatos de bico fino. O senhor é que é um felizardo. Fica aí sentado, belamente, pernas espichadas, uma vez ou outra levanta pra ver uma ficha. Veja hoje: que placidez! Que calmaria!...
- Às vezes é um lufa-lufa – contestou o barbudo. – Na grande Guerra,.. nas duas, aliás, e daquela vez de Hiroshima...
- Isso não acontece todo dia.
- Não? O Brasil não é fácil não! Massacre do Carandiru, matança de policiais, vingança dos policiais. E a boate, de onde mesmo? que teve o incêndio e tal!
Eu não sei o final da história, mas pelo andar da carruagem, o advogado ainda restará sentado lá na porta do céu, com os pés descalços, segurando seu par de sapatos de bico fino.
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