quarta-feira, 1 de maio de 2013

A linguagem dos sapatos

Ruth Guimarães 

Contei que era domingo? Pois era domingo, e o banco se estendia vazio, verde-azeitona, ao sol, verde-azeitona-com-mofo. A hora não sei. Cedo. Sol. O calçamento estava quente e vinha dele uma grande claridade. E fazia calor, tanto calor! Subiam baforadas do chão. Os sapatos brancos chegaram primeiro. Fizeram uma complicada manobra e se colocaram de calcanhares virados para o banco, um atravessado sobre o outro. Branquinhos, longos, de bico fino, meio salto, eles se aquietaram como dois pombos no ninho. Porém não por muito tempo. O que estava em cima passou para baixo, e se deixaram ficar outra vez. E não por muito tempo. Fizeram outros gestos. Enquanto um se mantinha imóvel, o outro tamborilava ritmicamente no chão, seguindo o compasso de certa música de dança, que chegava até a praça nas asas do vento. Pararam de repente, deram umas passadas rápidas, mais três ou quatro vagarosas, mais algumas rapidíssimas, estacaram, durante alguns segundos, e voltaram pesarosos ao banco. Executaram aos arrancos a complicada manobra outra vez, e lá ficaram quietos de novo, dois pombos no ninho. Os dois sapatos pretos chegaram depois, bem depois, muito engraxados, muito lisos, muito senhores. Vinham firmes e apressados, mas não muito. Os sapatos brancos se emparelharam um com o outro, de súbito, e se quedaram tão imóveis! Enquanto eles permaneciam assim como mortos, os sapatos pretos deram um volteio, pararam com as pontas para o lado da praça, um subiu calmamente, ficou no ar, num pendular suave, o outro se plantou com muita solidez no chão, não se mexeu mais. Ai, os sapatos brancos como pareciam aflitos! Um encostou no outro, um sapato branco no outro sapato branco, vejam lá, fez um movimento indeciso, longo, deslizando, do calcanhar às biqueiras, voltou até o meio, devagarinho, um movimento de gato que se esfrega, suavemente. Acho que ouvi um deles suspirar. Depois ficaram tão quietos os brancos e os pretos, tanto tempo que quase acabaram fazendo parte da paisagem. Tão quietos que um pardal deu um pulinho, outro pulinho, foi comer a sua migalha perto deles, o sem vergonha, e não aconteceu nada. Os alados pombos também se chegaram rebolando, bonitinhos. O asfalto não lhes suja os dedinhos cor de rosa. 

Como nada acontecia, os pássaros e eu nos distraímos olhando para o outro lado. Quando olhamos outra vez, já se estava no fim do segundo ato. Os sapatos brancos, que tamborilavam frenéticos, saíram diretos em frente, muito decididos, pela praça. Cada vez mais depressa, cada vez mais depressa, e os sapatos pretos quietos, diante do banco. Mas, logo em seguida, como os pretos deram passadas largas, apressadas, atrás dos sapatinhos brancos, que por sua vez voavam, na ânsia de serem alcançados!

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