Texto de Joaquim Maria Botelho
Casou-se, em 1949, com a prima Ruth, sua melhor e mais querida amiga. E passou a vida pedindo a Deus que lhe permitisse morrer antes dela, porque não suportaria perdê-la. Foi atendido no dia 9 de outubro de 2001, abatido pelo mal de Alzheimer.
O casal viveu em São Paulo os primeiros anos do casamento. Zizinho trabalhava na Estrada de Ferro Central do Brasil e Ruth no Laboratório Torres e em algumas editoras. Mas, sempre que podiam, ficavam períodos em Cachoeira Paulista, na chacrinha herdada do avô, o guarda-chaves Juca Botelho.
No começo de 1955, decidiram mudar-se para cá. Tinham três filhos pequenos – e eu na barriga – e queriam a tranquilidade de vê-los brincando e crescendo em lugar saudável, em contato com a terra e com animais. Ruth pediu remoção e assumiu cadeira no Colégio Valparaíba. Para ela não foi difícil. Graduada em Letras, num tempo em que o grau universitário era raro entre as professoras, e já autora de dois livros festejados pela crítica, tinha numerosos pontos de vantagem sobre os competidores e podia escolher qualquer escola que lhe aprouvesse. Para completar o plano, Zizinho, aventureiro e sonhador, abandonou o emprego promissor na estrada de ferro e resolveu que conseguiria trabalhar em Cachoeira Paulista ou em qualquer cidade próxima. Não perdia, nada, em sua opinião. Seu pai, Antonio Botelho, era o agente da estação Roosevelt da Estrada de Ferro Central do Brasil, seu chefe e por isso mesmo motivo de inveja entre os colegas. Chamavam-no de Botelhinho, em mal disfarçada censura por uma suposta preferência do agente pelo filho, em detrimento dos profissionais da área. Correto, dono de um código rígido de ética pessoal, Zizinho mortificava-se com a situação. Por isso, a mudança de cidade e de emprego não o incomodou. Muito depressa, conseguiu ocupação como laboratorista em uma firma de fotografia, na cidade de Lorena. Trabalhava à noite, quando Ruth já havia chegado a casa, das aulas do colégio. Trabalho exaustivo e inexpressivo, pelo menos serviu-lhe de escola para transformá-lo no excelente fotógrafo que foi. Aprendeu a composição química dos reveladores, fixadores e banhos de parada. Lia avidamente sobre história da arte, composição, estética.
Já atuando como fotógrafo, ele próprio construiu o ampliador, ele próprio comprava os químicos e misturava as soluções de nome difícil, como hidroquinona e hipossulfito. Todos nós o ajudávamos a estender, secar e cortar retratos. Menino, muitas vezes eu fazia as entregas das encomendas. Mais tarde, Marcos e Júnia também desempenharam a função. Papai tentou me entusiasmar pela técnica, mas confesso que não consegui me interessar pela fotografia. Marcos, por esse tempo, era quem começava a se animar pela carreira do pai e era quem mais aproveitava os momentos com ele, no laboratório.
Zizinho foi homem extraordinariamente devotado à mulher e aos filhos. Alegre e carinhoso. Em casa, à noite, tocava violão e cantava, com todos os filhos em volta. Apreciava música clássica e nos incentivava a ouvir. Ensinou-nos a dançar. Ele e Ruth escreviam e montavam peças de teatro, das quais participavam amigos, alunos, e nós também. Foram, sempre, verdadeiros agitadores culturais na cidade.
Para dar ideia da força desse casal: Zizinho teve tuberculose em 1961 e por decisão de Ruth combinaram que fariam o tratamento em casa. Foi cercado de todos os cuidados, remédios, esterilização de roupas e utensílios e acompanhamento médico do velho amigo da família e primo torto dos dois, Dr. Darwin Aymoré do Prado.
Em 1964, um problema de saúde de Marta, a filha mais velha, levou a família de volta para São Paulo. Zizinho, que podia trabalhar em casa, e, portanto, com horários flexíveis, assumiu alegremente o papel de cuidar dos filhos, enquanto Ruth escrevia e lecionava. Era um zero à esquerda, na cozinha, porém. Era capaz de, fervendo água, deixar queimar. Por isso, eu fui destacado para juntar-me à comitiva e administrar a casa, em Cachoeira, seis anos depois, em 1970, quando a nefrite do nosso irmão Antonio José exigiu tratamento em clima quente. Por dois anos, a família viveu repartida. Metade em Cachoeira, metade em São Paulo, onde Ruth ficara para não perder o emprego na editora Cultrix.
Zizinho foi fazer faculdade já aos 53 anos. Os filhos estavam crescidos. Ruth era efetiva na cadeira de Português. Ademais, ainda que amasse a fotografia, com a abertura de modernos laboratórios, revelações no mesmo dia (ainda não havia a tecnologia para revelação em uma hora), agências que ofereciam o pacote completo para casamentos, por exemplo, o mercado ia ficando restrito para “retratistas” como ele. Pois Zizinho enfrentou o vestibular, passou com honras, sofreu o trote como qualquer calouro – divertiu-se ao chegar a casa com a cara pintada e a cabeça raspada – e foi cursar Letras, na Faculdade Teresa D’Ávila, em Lorena.
Em 1975, penúltimo ano da faculdade, participou do Projeto Rondon, na cidadezinha de Uruçuí Preto, no interior do Piauí.
Tornou-se professor, depois, da mesma faculdade, onde formou centenas de alunos que devem a ele o gosto pela arte.
Achei, há algum tempo, um papel dobrado com uma experiência literária de meu pai. Trata-se de um trabalho solicitado por um de seus professores da faculdade e devia responder a seguinte pergunta: “O que estou fazendo aqui?”. O texto mostra quem ele era. Para mim não seria preciso esse testemunho para que eu soubesse quem era meu pai. Foi o melhor amigo de minha mãe – e só isso já teria bastado para que eu o admirasse. Mas era mais do que isso. Um homem especialmente ético e especialmente amoroso. Foi meu herói e foi meu amigo.
Seu Zizinho. Era assim que eu o chamava, quando o via passar, rápido, rápido, rápido, na sua bicicletinha! Que talento, que sorriso gostoso, que astral. Saudade!
ResponderExcluir