sexta-feira, 19 de abril de 2013

Balada da cachaça

Ruth Guimarães 

Era subir e descer morro nesse ondulado chão mineiro, em direção da fazenda do Coronel Zé-Juquinha, dono da pinga mais afamada das redondezas. Vamo lá João Bento! Eu não bebo, que João Bento respondeu. Pelo passeio. Vem com a gente! E foi assim que às 6 horas de um domingo muito claro, eles se encontraram na vereda batida, andando ligeiro, no passo gingado do caipira. Eram quatro e tencionavam três deles dar um bom rombo nos alambiques. Falavam pouco em frases entrecortadas, eles já sabiam o que queriam dizer e se entendiam. Assunto era um só: cachaça. João Bento que não bebia, ia quieto, escutando fala da passarinhada no galho, em matinata estridente. Homem lá é legal. Deixa beber à vontade. “Cê chega lá e bebe. Mas bebe! Sem mistura. Borbulha limpa que é um cristal. Cheira longe, chamando água na boca. 

E todos tinham um jeito a mo’ que com saudade. Foram entrando porteira adentro com sol nado. Não houve alvoroço nenhum à chegada dos visitantes. A empregada da fazenda mal levantou os olhos. Alguém chegou à janela, desinteressadamente. Guinaram para o lado engenho puxado à água. No riozinho transparente, a grande roda negra mergulhava espadanando o líquido para todos os lados, num alegre escachôo, água toda entretecida em prata e sol. Cana picada aos roletes, limpa de folhas, raspada da olhadura, e no ar um cheiro quente, um pouco ácido, tão pungente! mas adocicado também. Abelhas zumbindo esvoaçantes aqui e ali. Nos tanques imensos, esverdeados de limo, na sombra muito fresca, a aguardente nova. Três deles levantaram a cabeça de súbito, como cavalo passarinhando, e fungaram. João Bento farejou um pouco o ar. As narinas fremiram e seus olhos se encheram d’ água. Bonito aqui, disse ele.

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
E lambeu os lábios. E quando vieram as canecas de folha, feitas de caneca de azeitonas, bebeu também, com um ar excitado, parecia que já estava ficando bêbado antes, com o cheiro. Crescia-lhe no peito uma emoção nova e engolia a largos haustos, ávido, aturdido, sufocando. Cuidado João! “Ce não ta custumado. Pinga nova não arde, mas tonteia.”. João Bento meio que sorriu. Andava num outro mundo. E diante do ar meio estúpido dos companheiros, estendeu de novo a caneca. Mas, claro, não deu para continuar por muito tempo. Com pouco mais estava estendido no chão, e as abelhas vinham-lhe pousar no rosto enquanto ele ressonava forte, anestesiado. Brilhavam-lhe os lábios, como uma flor mergulhada n’ água. Cambeteando a gente vai, mas desse jeito... E foi aí que arranjaram um burro emprestado, digo, uma besta ruana, para ser exata, de malhas pretas, redondas. João Bento foi de atravessado no animal, pesando para baixo, a cabeça pendurada de um lado, os pés sujos do outro, largado feito um defunto. 

No outro dia, madrugadinha, era segunda-feira, João Bento mesmo voltou à fazenda para devolver a montaria. 

Começou assim a história lamentável do maior bebum da cidade. 

É preciso ter muita força pessoal e social para recusar bebida. 

“Não, muito obrigado, não bebo”, não basta. A amizade do copo é poderosa. Um bebum não deixa o outro na mão, jamais. Pode não emprestar dinheiro para o leitinho das crianças, mas o dinheirinho do gole é sagrado. 

Para consolidar o hábito e o vício, dinheiro de pinga, o que chamamos de dinheiro de pinga, é uma isca, um pingo. 

Botelho Netto
Foto de Botelho Netto
O dono do buteco não deixa nada fiado, mas a continha do bebum não é cortada. É uma conspiração universal. O governo facilita. As leis são benévolas. Seus agentes fecham os olhos. A sociedade fecha os olhos, benevolente; e a gente sabe de criaturas altamente colocadas, com poder de tratamento sério que continuam cometendo disparates em público (e dentro de casa nem se fala) por causa de embriaguez. E quanto ao que acontece no trânsito, com a pinga dirigindo carros e até caminhões, nem é bom falar. 

Pelos males que acarreta, o vício da embriaguez deveria ser odiado, perseguido, rechaçado, abominado, dominado, combatido por todos os meios. É o que acontece? 

Já vi pais dando bebida aos filhos pequenos, a crianças, para não ficarem com bicha desconfiada. E outros que contemplam esses começos de perdição, sem uma palavra de censura. Lei seca ou lei molhada, vamos caminhando para a perdição e para as tragédias, que as há terríveis. Estará a solução desse problema afeto à política, à Educação, à Moda, às atividades sociais, à Beneficência. Pertence a cada um de nós. 

Que a nossa reprovação venha do fundo da alma de cada um de nós, viva, funda, intransigente, e que não aceite o que nos torna inconseqüentes, incapazes, cúmplices ao passar pela vida sem viver. 

Que não aconteça mostrarmos a alguém o caminho do alambique. Que não aconteça facilitarmos a alguém conhecer o gosto da cachaça e o seu poder de fuga da vida, tão difícil. Quanta gente anda por aí à mercê da direção do vento!

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