Ruth Guimarães
Era subir e descer morro nesse ondulado chão mineiro, em direção da fazenda do Coronel Zé-Juquinha, dono da pinga mais afamada das redondezas. Vamo lá João Bento! Eu não bebo, que João Bento respondeu. Pelo passeio. Vem com a gente! E foi assim que às 6 horas de um domingo muito claro, eles se encontraram na vereda batida, andando ligeiro, no passo gingado do caipira. Eram quatro e tencionavam três deles dar um bom rombo nos alambiques. Falavam pouco em frases entrecortadas, eles já sabiam o que queriam dizer e se entendiam. Assunto era um só: cachaça. João Bento que não bebia, ia quieto, escutando fala da passarinhada no galho, em matinata estridente. Homem lá é legal. Deixa beber à vontade. “Cê chega lá e bebe. Mas bebe! Sem mistura. Borbulha limpa que é um cristal. Cheira longe, chamando água na boca.
E todos tinham um jeito a mo’ que com saudade. Foram entrando porteira adentro com sol nado. Não houve alvoroço nenhum à chegada dos visitantes. A empregada da fazenda mal levantou os olhos. Alguém chegou à janela, desinteressadamente. Guinaram para o lado engenho puxado à água. No riozinho transparente, a grande roda negra mergulhava espadanando o líquido para todos os lados, num alegre escachôo, água toda entretecida em prata e sol. Cana picada aos roletes, limpa de folhas, raspada da olhadura, e no ar um cheiro quente, um pouco ácido, tão pungente! mas adocicado também. Abelhas zumbindo esvoaçantes aqui e ali. Nos tanques imensos, esverdeados de limo, na sombra muito fresca, a aguardente nova. Três deles levantaram a cabeça de súbito, como cavalo passarinhando, e fungaram. João Bento farejou um pouco o ar. As narinas fremiram e seus olhos se encheram d’ água. Bonito aqui, disse ele.
Foto de Botelho Netto |
No outro dia, madrugadinha, era segunda-feira, João Bento mesmo voltou à fazenda para devolver a montaria.
Começou assim a história lamentável do maior bebum da cidade.
É preciso ter muita força pessoal e social para recusar bebida.
“Não, muito obrigado, não bebo”, não basta. A amizade do copo é poderosa. Um bebum não deixa o outro na mão, jamais. Pode não emprestar dinheiro para o leitinho das crianças, mas o dinheirinho do gole é sagrado.
Para consolidar o hábito e o vício, dinheiro de pinga, o que chamamos de dinheiro de pinga, é uma isca, um pingo.
Foto de Botelho Netto |
Pelos males que acarreta, o vício da embriaguez deveria ser odiado, perseguido, rechaçado, abominado, dominado, combatido por todos os meios. É o que acontece?
Já vi pais dando bebida aos filhos pequenos, a crianças, para não ficarem com bicha desconfiada. E outros que contemplam esses começos de perdição, sem uma palavra de censura. Lei seca ou lei molhada, vamos caminhando para a perdição e para as tragédias, que as há terríveis. Estará a solução desse problema afeto à política, à Educação, à Moda, às atividades sociais, à Beneficência. Pertence a cada um de nós.
Que a nossa reprovação venha do fundo da alma de cada um de nós, viva, funda, intransigente, e que não aceite o que nos torna inconseqüentes, incapazes, cúmplices ao passar pela vida sem viver.
Que não aconteça mostrarmos a alguém o caminho do alambique. Que não aconteça facilitarmos a alguém conhecer o gosto da cachaça e o seu poder de fuga da vida, tão difícil. Quanta gente anda por aí à mercê da direção do vento!
Nenhum comentário:
Postar um comentário